sábado, 3 de abril de 2010

# 142 - 02/04/2010

Kraftwerk
• Les Robots (Extended mix)
• Les mannequins
• Spacelab

Dark Throne – Those Treasures Will never Befall you
Maquinado – Zumbi
Karina Buhr – Eu menti pra você

Megadeth
• Dialectic Chaos
• This Day we fight

Drop Loaded:
Lucy and the popsonics – Popdollkiller
The Name – on my own

Crepúsculo Maldito – Necro Metal Punks
Noskill – Comodismo
Jason – Lixo para porcos
Mahatma Gangue – A Feiticeira
Agnostic Front – Traitor
Circle Jerks – Deny everything
D. O. A. – I hate punk rock
GWAR – Fishfuck

Cidadão Instigado – A radiação e a terra
Plastique Noir – Welcome to the creepshow
Montage – MSFG
O garfo – Midi Sina

Delinquentes – L,Uomo Delinquente
DHD - gueto
Suzana Flagg – Planeta dos macacos
Turbo – O viciado
Madame Saatan – Ídolos Mortos
Ana Clara Matos – Utopia milenar

Bonus:
Ramones
The Isley Brothers
Carl Perkins

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HOMEM MÁQUINA
Por Arthur G. Couto Duarte.
Fonte: CD- Rom Bizz 20 Anos

Situado na parte Oeste da Alemanha Ocidental, o vale do Ruhr se estende ao longo de uma área retangular de contornos irregulares, recortada pelo rio Reno e sua rede de afluentes. Hoje (NOTA: Essa matéria foi originalmente publicada no final dos anos 80), o Ruhr não é só o maior centro produtor de maquinaria pesada do país como também um dos mais portentosos complexos industriais do planeta. Foi nele que, em meados do século XIX, os alemães obtiveram o aço pela primeira vez, conquistando dessa maneira sua admissão na revolução industrial. Cerca de vinte quilômetros dali, e exposta aos efeitos nocivos dos detritos da Thyssen, Mannesmann, Klockner, Bayer etc., posta-se Düsseldorf, a capital do estado da Westfália.

Foi em meio a esse ambiente poluído por fumaça, lixo inorgânico, fuligem, entulho de carvão e substâncias químicas diversas que surgiu o Kraftwerk, talvez o mais importante e influente grupo eletrônico da música pop de todos os tempos. Não fosse ele, possivelmente boa parte das tendências musicais que despontaram nas duas últimas décadas - tecnopop, disco, cold wave, industrialismo, house, hip hop - sequer teria existido. Mais adiante, poderemos verificar como a referida situação geográfica foi crucial para a formulação dos temas da banda, especialmente a relação homem-máquina, sobre a qual o Kraftwerk veio a desenvolver uma filosofia bastante peculiar.

A origem do Kraftwerk pode ser detectada no semi-obscuro Organization, um quinteto de talhe psicodélico fortemente marcado pela música do Pink Floyd (leia-se o LP A Saucerful of Secrets, de 68). E no núcleo do Organization que vamos encontrar os músicos Ralf Hutter e Florian Schneider Esleben. De background clássico, os dois vinham trabalhando juntos desde 1967, apresentando-se esporadicamente em auditórios de colégios em Düsseldorf. O detalhe é que, desde essa fase primeva, eles já desenhavam e construíam sua própria tralha eletrônica. Em 1969, o Organization editou, via RCA inglesa, seu único LP, Tone Float. A rigor, não se pode considerá-lo um exemplo de música eletrônica, uma vez que as seleções incluídas não passam de caóticos mixes obtidos a partir de instrumentos convencionais.

Decepcionados com a fraca repercussão alcançada pelo Organization na Inglaterra, Hutter e Schneider tratam de voltar à Alemanha em 1970. Lá, criam o Kraftwerk, cujo nome quer dizer "Usina de Força", "Complexo Elétrico". Aqui, cabe um parênteses, o tal "complexo" a que se referiam não era outro senão o de uma refinaria abandonada de Düsseldorf onde faziam ensaios, e que também sediava o protótipo do estúdio do amigo Conny Plank (eminência parda do nascente kraut rock). Foi nessa instalação nada ortodoxa, tendo ao fundo a ruminação mecânica das fábricas, que forjaram o som duro e abrasivo característico de seus primeiros álbuns, Kraftwerk 1 (1970) e Kraftwerk 2 (1971).

Tais registros captam a dupla - junto a Klaus Dinger e Andreas Hohmann - realizando curiosas experimentações eletroacústicas, mediadas por instrumentos como o violino e a flauta, e pelos recursos tecnológicos de que dispunham na ocasião(ring modulators, alternadores de freqüência, phase shifters e um genial aparato de percussão operado por células fotoelétricas!). Em ambos, traços do rock progressivo inglês (notadamente o feito pela escola de Canterbury) e da música de vanguarda presente através das emanações das pesquisas de Terry Riley, La Monte Young, John Cage e Karl-Heinz Stockhausen podem ser percebidos sem dificuldade. Enquanto as áspero-percussivas "Stratovarius" e "Ruckzuck" parecem prenunciar a modulação industrialista desenvolvida anos depois por formações como Throbbing Gristle e Cabaret Voltaire, "Von Himmel Hoch" traz (bem ao gosto da época) a citação de uma obra clássica, o Weinachts Oratorium, de J.S. Bach. Todavia, são os dezessete hipnóticos minutos de "Klingklang" que projetam o Kraftwerk para o seu próprio futuro.

Já sem Dinger e Hojmann, mas mantendo Conny Plank no posto de engenheiro de som, o duo gravou seu terceiro LP em 1973. Batizado simplesmente Ralf and Florian, e gravado alternadamente em Düsseldorf, Colônia e Munique, esse disco é um passo significativo no processo evolutivo do grupo. De modo inesperado, a música do Kraftwerk abre espaço para temas mais arejados e de breve duração, em que o ritmo - até então obsessivo e rudemente metálico - se desdobra em células suaves, quase dançantes. Outros destaques são o uso do piano elétrico em seqüências circulares - que guardam semelhança com as criadas por Mike Ratledge no Soft Machine - e, principalmente, a maturação do conceito "Kraftwerk", algo que justifica o emprego do material tecnológico como única forma coerente de trabalho na sociedade contemporânea. Pode-se dizer que, para os membros do Kraftwerk, o fator-chave da compreensão do futuro é a técnica. E é por meio dela que organizam seus jogos sonoros.

Sintetizadores na linha de frente, Ralf and Florian se afasta do campo experimental violento para expor a beleza glacial da música cibernética em ambiências rarefeitas ("Heimatklange") e exóticas ("Ananas Symphonie", uma suíte psicoléptica emoldurada por ritmos latinos). Mesmo que se trate de uma peça de transição, as relações entre a psiquê humana e o funcionamento dos aparelhos computadorizados, que o grupo esmiuçaria posteriormente, já se deixam entrever aqui.

Apesar do charme das maquinações de Ralf and Florian, foi apenas no final de 1974 que o Kraftwerk começou a atingir o grande público. Em pleno auge do rococó sinfônico do ELP e do Yes, os alemães surpreenderiam o cenário rock com o notável Autobahn, que realizaram em parceria com os novatos Klaus Roeder e Wolfgang Flur.

Nessa gravação, o Kraftwerk pôde confirmar o distanciamento que guardava da chamada "corrente cósmica" (então em voga na Alemanha), ao valer-se da tecnologia de uma forma utilitária e racional. A "viagem" de que falam em Autobahn não está atrelada a vôos místicos ou prospecções transcendentais. Ao contrário, ela diz respeito à cinemática pura, ao estudo dos corpos em movimento. Sua peça de resistência é indubitavelmente a faixa-título, um épico urbano-futurista que narra as sensações e impressões dos ocupantes de um Volkswagen´ que se desloca ao longo de oitocentos quilômetros de uma super auto-estrada, a "Autobahn". Ocupando todo o lado um do disco, seus vinte e dois minutos fascinam tanto pela simplicidade melódica quanto pela utilização exemplar de colagens derivadas do método expressionista. E, quando uma versão editada explode nas paradas de compactos do mundo inteiro, é como se os músicos do Kraftwerk estivessem realmente a ponto de - conforme expresso por eles nos jornais da época - se tomarem os Beach Boys dos anos 80!

Se "Autobahn" providenciou a disseminação de uma outra música pop, a ingenuidade das relações de seus integrantes com a cúpula da gravadora Phonogram levou-os à exclusão dos lucros massivos advindos da venda do LP. Tudo graças à cessão dos direitos totais sobre a obra, pela irrisória quantia de dois mil dólares...

Deslizes financeiros à parte, o que "Autobahn" revelava de mais insólito era a capacidade de provocar empatia tanto nos apreciadores de música "séria" quanto nos freqüentadores das pistas de dança. Outra proeza foi a derrota da barreira lingüística (sua letra foi toda escrita em alemão) e da hegemonia do inglês nas charts de inúmeros países. Outra vez, Hutter e Schneider antecipavam os anos que viriam, marcando - quase vinte anos antes dos novos grupos da Europa Ocidental - a necessidade de criar sua própria identidade cultural.

Mais à frente, a não-captação dos royalties devidos à "Autobahn" seria compensada por um polpudo contrato com o Capitol.

O primeiro disco a ser gerado no novo selo sai em 1975: Radio-Activity . Além da defecção de Klaus Roeder (substituído por Karl Bartos), mudanças estéticas - o visual hippie cultivado por barba e cabelos compridos dá lugar a uma asséptica imagem clean - e temáticas - a concentração do LP em um único leit-motiv, as ondas de rádio - se fazem acompanhar da máxima especialização de cada elemento. Assim, Florian passa a se dedicar à parte melódica e à execução dos instrumentos, Ralf concentra-se nos efeitos sonoros e os colaboradores Bartos e Flur assumem o papel de bio-unidades de percussão.

Vozes "tratadas", acontecimentos rítmicos factícios, repetição de padrões sonoros, pulsos elétricos e a esquematização das faixas segundo os efeitos provocados pelas ondas de rádio. Radio-Activity é o primeiro registro da banda a dispensar formalmente o uso da guitarra. Novamente referindo-se ao amanhã, encontramos aí o aproveitamento de emissões radiofônicas em colagens musicais, inauguradas por Stockhausen, que a dupla Brian Eno-David Byrne iria reexplorar cinco anos depois em My Life in the Bush of Ghosts.

Imediatamente menos acessível e dançante do que Autobahn, Radio-Activity também parece se preocupar em resgatar certos valores culturais alemães, sobretudo os que dizem respeito à tradição orquestral. E o que se conclui pela forma com que as vozes são manipuladas. Filtradas e desconectadas da obrigação de portar mensagens, elas subsistem apenas como sons. O mesmo vale para as palavras. Quando presentes nas "letras", estas funcionam no mais das vezes como pistas, códigos cifrados para a apreensão do real do mundo ocidental.

A esta altura, o grupo empreendia turnês com seu sofisticadíssimo equipamento portátil. Foi quando lapidaram o conceito de electronic body music (embora nos dias de hoje Luc Van Acker e Cia. reivindiquem a criação do termo), conforme Ralf Hutter expôs em janeiro de 77 a um atônito repórter da finada publicação Beat Instrumental: "Isso é chamado electronic body music porque é mais um jorro imediato de auto-expressão do que propriamente um exercício ensaiado. Os primeiros experimentadores da eletrônica encaravam-na mais como um novo instrumento do que um novo meio, e muitos terminaram girando trezentos e sessenta graus ao colocar todos os seus esforços na reprodução eletrônica dos sons acústicos. O Kraftwerk - e eu quero dizer o grupo como um todo - é na verdade um instrumento musical. Nosso equipamento e nós mesmos funcionamos simplesmente como canais de um único circuito".

Quem julgava esta e outras teorias como demasiado fantasiosas sobressaltou-se quando o Kraftwerk realizou uma insólita colaboração com a Companhia de Balé de Stuttgart. Através de uma aparelhagem inteiramente comandada por raios de luz, os bailarinos puderam tocar sua própria música eletrônica, ao mesmo tempo que proviam o acompanhamento para seus movimentos. Afinal, arte e ciência não eram tão incompatíveis assim!

O hiato compreendido entre Radio-Activity e o próximo disco foi preenchido pela coletânea Exceller 8, que saiu em alguns lugares com o cretino subtítulo "O Melhor do Kraftwerk"... Em 1977, a idéia da dinâmica homem-máquina volta a se impor em Trans-Europe Express. Saudado entusiasticamente pela crítica, o LP reforça o valor das passagens melódicas, atribuindo-lhes todavia um desempenho que extrapola o domínio da "canção". No todo, predominam rumorações, harmonias delicadas que vão se desenvolvendo pelos trilhos da automação.

Depois do carro e do rádio, o Kraftwerk entregava-se à transmissão das emoções que alguém poderia experimentar durante uma viagem de trem pela Europa. A bordo, a concisão descritiva, a recorrência rítmica, o humor cool (que alude à falta de adaptação do ser humano frente ao progresso) e a linguagem binária computadorizada dão a tônica dessa sutil representação do utilitarismo de nossa era.

É 1977, e o radicalismo punk toma de assalto o velho continente com uma fúria indescritível. Sustentando o neoniilismo de forma tipicamente cool, na ocasião Ralf Hutter dirigiu-se aos jovens com a seguinte reflexão: "Estamos vivendo numa época em que existem coisas das quais não podemos mais nos esquivar. O que fazemos é uma ponderação acerca de tudo que nos rodeia. Isso é ciência. A ciência, assim como nós, é ambivalente: pode ser usada para destruir o homem com bombas ou para tornar a existência mais agradável pela Medicina... Podemos usar um martelo para bater na cabeça do vizinho ou para construir uma casa. Estou perto de que estamos demonstrando a essa geração, que está contra a ciência, a tecnologia, que com elas é possível realizar coisas construtivas para a humanidade".

O rock alemão, uma década à frente

A partir de 1973, as dissidências do Kraftwerk se reagruparão em algumas das mais inovativas formações da cena eletrônica alemã, Primeiro, Klaus Dinger (percussão) e Michael Rother - que foi membro do grupo, embora não apareça em nenhum disco - montam o Neu!, Sua escassa produção (três LPs, todos pelo selo alternativo Brain) é o que há de mais ousado no contexto minimal/tribal/eletrônico, chegando ao ponto de algumas faixas utilizarem mudanças na rotação do toca-discos para obter diferentes leituras, E isso uma década e meia antes dos DJ´s belas "inventarem" a new beat!

O Neu! rachou em 75 e, mais tarde, Michael Rother uniu-se aos integrantes do Cluster (Dieter Moebius e Hans-Joachin Roedelius) no trio Harmonia, um grupo bem mais próximo da clássica linha repetitiva eletrônica. São apenas dois discos: Musik from Harmonia e De Luxe, Já num idioma francamente rock, Klaus Dinger se estabeleceria ao lado de Hans Lampe, e Thomas Dinge (ambos ex-colaboradores do Neu!) no L.A. Düsseldorf.

Tangencialmente às criações de Dusseldorf, em Berlim o som eletrônico também grassou em fronts bastante singulares.

Era lá que se situava o Q.G. do Kos Mische Kurriers, movimento ideológico-místico-anarquista capitaneado pelo jornalista e agitador cultural Rolf-Ulrich Kaiser, e levado a cabo por bandas como Ash Ra Tempel, Popol Vuh, Mythos e Limbus. Toda sua efervescência procedia de uma espécie de retomada do movimento hippie (graças à mudança do guru do LSD Timothy Leary para lá) e do westcoast sound do final dos 60.

Isolados, mas não menos importantes, são os grupos Faust (oriundo da minúscula Wunne e que soa como um híbrido esquizóide de Captain Beefheart com o King Crimson), Can (o Velvet Underground germânico), Guru Guru (cujo primeiro LP Ufo merece ser ouvido até hoje), Tangerine Dream e os solistas Konrad Schnitzler, Klaus Schulze e Manuel Gottsching.

A conjunção dos insólitos métodos do Kraftwerk aos esforços movidos por artistas e movimentos culturais afins - o futurismo italiano, o serialismo, a música eletrônica alemã dos anos 50, dadá, o surrealismo etc. - desencadeados ao longo do século XX permitiu que o grupo acenasse, em 78, com novas possibilidades de satisfação para as necessidades do ser humano. Temas como os presentes em Radio-Activity e Trans-Europe Express não só ativavam a rede de neurônios com cargas de uma simbologia reconhecível como também explicitavam de um modo prático e racional os mecanismos de adaptação à "nova era tecno" que, seguramente, já vivíamos desde então.

Catalisando sua ânsia por movimento e interferência, Ralf e Florian realizaram, neste ano um perfeito exercício de síntese chamado Man Machine, um trabalho que ultrapassava a mera totemização da tecnologia para elucidar em que níveis se dariam as fusões entre a matriz cibernética e o sistema nervoso. Realmente, em Man Machine, o personagem homo sapiens não se encontrava submetido pela máquina. Na verdade, o que os alemães desejavam demonstrar era a plausibilidade da existência de uma simbiose biônica. Referindo-se a uma série de palavras de ordem - "interação", "extensões recíprocas", "terminais" -, refletiam aquela que era a propriedade básica da metodologia kraftwerkiana: "A máquina ajuda o homem e o homem admira a máquina". Ou, conforme Ralf Hutter fazia questão de reiterar: "Estamos construindo instrumentos que, num certo ponto, tornam-se aptos a criar sua própria identidade. Eles mesmos providenciam seu feedback. Alguns são capazes de tocar sozinhos, e embora nós os toquemos, eles também nos tocam. É a isso que nos referimos como música eletrônica: ao tocar a máquina, você também está preenchendo sua função individual na elaboração de um circuito musical".

Man Machine foi um registro fundamental para que o público pudesse constatar que a evolução do Kraftwerk não se fazia apenas no campo sônico. Além de aperfeiçoar a autoproclamada "industrielle volksmusic", o grupo chamava cada vez mais a atenção pela extraordinária produção, dinamização do emprego do estéreo e exploração dos extremos da acústica; tudo isso em nome da estimulação de diferentes sensações.

Deve-se ressaltar, entretanto, que tal obsessão científica jamais seduziu seus integrantes a lançarem mão de descobertas controvertidas, tais como as ondas alfa e as freqüências subsônicas (algo que, sob o comando de Genesis P. Orridge, então com o grupo Throbbing Gristle, era utilizado sem maiores pruridos para induzir vômitos na platéia). Para o Kraftwerk, bastava o esquadrinhar da faixa sonora compreendida entre os vinte e os 20.000 hertz - aquela que é perceptível de forma consciente ao ouvido humano. Nesse sentido, o máximo que o grupo se permitiu nos shows foi a aplicação de inofensivos ionizadores de ambiente. Em termos de sistemas de operação, Man Machine revelou outras tantas novidades. Pela primeira vez, o Kraftwerk fez uma referência direta a um país não-europeu ocidental na capa, cuja arte é visivelmente inspirada nas criações do construtivista soviético Lissistky. E mais: o título aparece impresso nos idiomas inglês, francês, alemão e russo; sem dúvida, mais uma oportuna antecipação ao movimento "sem fronteiras" e à idéia de reunificação do velho continente.

Já estritamente em relação à música, Man Machine proporciona um experimento bem mais rítmico e físico que os antecessores, algo que pode ser melhor apreciado nos temas "The Robots" (que leva o vocoder até as pistas de dança) e "The Model" (mais tarde retomado em covers instigantes por artistas tão díspares quanto o guitarrista Philip Litman, aliás Sha Kefinger, e o bestial trio de Chicago, Big Black; o que por si só nos dá conta da universalidade das propostas do Kraftwerk). Outro belo momento é "Neon Lights", uma feérica narrativa acerca do esbatimento dos limites noite-dia, a partir da popularização do gás néon como fonte de luz nas grandes cidades. Simultaneamente desencantado e otimista, lá estava o Kraftwerk para novamente nos guiar por entre os meandros do cotidiano urbano.

Ao apresentar Man Machine ao vivo em Paris, Londres e Nova York em 79, o Kratfwerk viabilizou um dos mais elaborados espetáculos de luz e som jamais vistos em toda a história da música pop. Não satisfeito em revolucionar o approach audiovisual tradicional através de um estonteante bombardeio de borrões cromáticos, jorros de laser e vídeo especiais, os músicos chegaram ao cúmulo da ousadia quando propuseram seu afastamento do palco, substituindo-se por clones de si próprios, vestidos como na capa do disco (os "showroom dummies", surpreendentemente realistas), programados para executar movimentos e tocar em sincronia com música pré-gravada.

Encerrado esse estágio, o Kraftwerk permanece em animação suspensa por dois anos. A prolongada ausência foi compensada pelo providencial Computer World (81), álbum que, conforme o título já antecipava, tratava da crescente mediação do dia-a-dia do ser humano pelo contingente dos computadores. O disco gerou acirradas polêmicas entre a crítica. Para muitos, Computer World soava por demais previsível, correndo inclusive o risco de passar despercebido no meio da enxurrada de lançamentos da nova geração de synth-bands. Outra facção preferiu extrair dele mais um exemplo de fina ironia da banda. De fato, o tecnopop urdido pelo Human League, Soft Cell, Depeche Mode, Ultravox, Orchestral Manoeuvers In The Dark e outros menos votados não passava de um derivado da música dos alemães. Assim, poder-se-ia conjecturar que Ralf e Florian estivessem aí apenas se divertindo. O prazer de imiscuir-se despercebidamente na linha de frente da brigada tecno se equivaleria ao obtido durante suas "fugas" noturnas, quando iam dançar (discretamente vestidos e incógnitos) entre a gente comum que freqüentava as discotecas.

Seja como for, Computer World agradou em cheio aos fãs. Além de detonar as paradas do globo com os hits "Pocket Calculator" (um alien-funk cujo ritmo é fornecido por calculadoras de bolso), "Computer Love" (seu maior sucesso comercial desde a versão reduzida de "Autobahn", chegou a ser trilha de novela das oito no Brasil) e "Numbers" (este, tão irresistivelmente sacolejante que chegou a invadir a seletiva parada soul da Billboard!), de quebra recebeu uma indicação para o Grammy. O êxito da empreitada culminou numa bem-sucedida turnê pela Europa, ocasião que aproveitaram para testar o novo estúdio Kling Klang, inteiramente reformado e miniaturizado.

Ainda que tivesse sido efetivado por meio de aparelhagem ultra-sofisticada, Computer World estava longe de ser uma celebração inconseqüente à tecnologia de ponta. Subversivos à sua maneira, os membros do Kraftwerk deixavam claro em muitas músicas as dúvidas que guardavam em relação ao uso dos computadores como instrumentos de controle e manipulação social. Era disso que tratava a faixa-título, por exemplo, em que os computadores apareciam integrados a um sistema de rastreamento da Interpol, FBI e Scotland Yard. Dessa forma, ao criar música aparentemente pueril a partir de calculadoras de bolso, era como se o Kraftwerk estivesse querendo alertar o mundo que já estava passando da hora de alguém utilizar a tecnologia como um mecanismo de autoconhecimento e resistência.

Em 82, o grupo permaneceu enfurnado no "jardim eletrônico" (como carinhosamente chamavam seu estúdio de Düsseldorf), desapontando aqueles que ansiavam por uma seqüência imediata a Computer World. Nessa época, circularam rumores de que Ralf Hutter encontrava-se em estado de coma, devido a um traumatismo craniano que teria sofrido após um acidente de bicicleta. Entretanto, amigos íntimos dos músicos não cansavam de asssegurar que tanto Hutter quanto os demais encontravam-se em perfeitas condições de saúde.

Enquanto a boataria rolava solta, a música do Kraftwerk ia ultrapassando os limites arbitrados para o pop, sendo utilizada não só como mero entretenimento, mas também com fins educacionais (em jardins da infância) e terapêuticos (em hospitais psiquiátricos). A esse respeito, Florian Schneider não se privou de formular uma curiosa correlação música eletrônica psicanálise: "Os instrumentos eletrônicos programáveis são espelhos nos quais podemos projetar nossos pensamentos. Sendo assim, o sintetizador não é nada mais que um instrumento freudiano, um instrumento psicanalítico. Não nos sentimos plenamente satisfeitos com as possibilidades que o sintetizador nos proporciona atualmente, mas esperamos que ainda se possa avançar mais nesse terreno..."

O cinema também foi outra área investigada pelo Kraftwerk. Apesar de deixarem claro que não tinham qualquer interesse por roteiros intelectualizados, os músicos colaboraram com o diretor inglês Christopher Petit no filme experimental Radio On (79). Parcerias semelhantes ocorreram nos longas Chinese Roulette e Berlin Alexanderplatz, ambos de Fassbinder. Como conseqüência óbvia desse flerte com o cinema, em 88 o Kraftwerk gravou o maxi-single "Tour de France", cuja música foi veiculada como trilha sonora das retransmissões televisivas da homônima prova ciclística. Ao avaliar o ineditismo desse trabalho anos mais tarde, Ralf Hutter elucidou dessa forma a fonte de sua concepção: "´Tour de France´ era bastante autobiográfica. Até hoje, andamos muito de bicicleta. Para nós, a bicicleta é um símbolo da autodeterminação, da liberdade: com ela, o homem-máquina transforma-se numa máquina em movimento. A bicicleta realiza uma osmose perfeita entre o homem e a máquina, e ´Tour de France´ é o símbolo dessa osmose: o homem avança por si mesmo, sem o recurso de outras fontes de energia que não as de seu próprio corpo. Assim, andar de bicicleta pode ser considerado um tipo de ecologia. Até então, vínhamos trabalhando muito ao lado da máquina musical e pensante; desde aquele momento, tornou-se imperativo conferir também o lado físico: ser um só, estar em forma, treinar..."

Depois da edição de "Tour de France", o Kraftwerk mergulhou em outro período de silêncio, estimulando o aparecimento de nova onda de boatos. Entre inúmeras notícias extra-oficiais, uma dava conta do eminente lançamento de um disco chamado Techno Pop. "Espiões" chegaram a garantir que o mesmo teria quatro longas faixas, e que o grupo o apresentaria ao vivo trajando camisetas e shorts de banho! Mas de todo esse diz-que-diz, a história mais pitoresca tinha como pivô o então presidente da Elektra, gravadora que passara a distribuir os discos da banda nos EUA. Segundo fontes seguras, ele teria voado pessoalmente até Düsseldorf para capturar a mixagem matriz do suposto Techno Pop. Depois de muitas renegociações, e finalmente de posse da fita, voltou a Nova York, onde convocou uma reunião extraordinária da diretoria para ouvir o tão esperado disco. Mas, ao abrir a caixa que recebera, verificou que a mesma encontrava-se... vazia!

De concreto, tudo o que se viu do Kraftwerk em 84 foi o relançamento de Autobahn. Os fãs precisaram esperar até 86 para serem brindados com uma gravação inédita: o álbum Electric Cafe. Cercada por uma trama de peculiaridades, a gravação atesta o advento de uma nova linguagem mutante, em que as palavras de uso comum são abolidas em favor de sons autenticamente maquinais. Como na faixa de abertura, em que a repetição e modificação das onomatopéias "boing boom tschak" articula o conceito. A noção não era propriamente uma novidade. Nos 70, Florian Schneider já afirmava que "a palavra é uma tradição herdada da Bíblia. Nela, a linguagem é considerada como a arte mais elevada: ´no princípio era o Verbo´. Mas para nós isso já terminou. Existem novas coisas no ar, coisas muito rápidas, elétricas... O mais grave nessa história é a constatação de que as palavras funcionam, atualmente, como barreiras em nossos cérebros, um software anestesiante com o qual somos alimentados por nossos pais, pelos sistemas educacionais... Talvez seja necessário que alguém invente uma nova linguagem sintética".

Paralelamente, o disco conclamava os povos a abdicarem de abstrações como bandeiras, hinos nacionais e passaportes, ao servir uma salada de palavras em múltiplos idiomas - no trecho em português "Música eletrônica / figura rítmica / até política / na era atômica". Certamente, tais fusões eram a garantia de que a nova Babel futurista seria onívora. O lado um de Electric Cafe - em que três faixas robóticas se interpenetram numa primorosa amostra de técnicas de edição - flui em meio a conjunturas rítmicas sobrepostas, programas tímbricos e ruídos sintéticos. Por meio dele o Kraftwerk responde definitivamente (no território pop) ao serialismo total aventado pela escola de Darmstad, Alemanha - Boulez, Berio, Henze e Maderna, entre outros - no começo do século. No reverso, se não há nada com tal impacto, levadas dançantes permitem uma oportuna revisão da gestalt aplicada a "Tour de France".

Sons eletrônicos e sintéticos, ritmos industriais e - independente do que possam vir a nos apresentar no futuro - as quase duas décadas de atividade desses operários da eletrônica possibilitaram não apenas que a vanguarda encontrasse mais canais de comunicação com o público em geral, como o rompimento dos contrastes existentes entre a fria tecnologia e a produção musical popular. Deixo as palavras finais a Ralf e Florian: "A música não deve ter um papel direto na sociedade, mas deve ser capaz de se fazer permanentemente presente. A arte deve existir por si mesma. Na arte, trabalha-se durante anos até que se possa encontrar verdades básicas que satisfaçam o artista. Nós fazemos isso no cerne do mundo eletroacústico. Nos consideramos um laboratório. Investigamos até encontrar algo; então, gravamos isso em disco e tocamos num concerto, para apresentá-lo às pessoas. Simples assim".

Discografia

LP - KRAF7WERK 1 (71, Philips/AL); LP - KRAFTWERK 2 (72, Philips/AL); LP - KRAF7WERK (reúne os dois primeiros em única edição, 73, Vertigo/GB); LP - RALF AND FLORIAN (73, Vertigo/GB/EUA:, PolyGram/BR); LP - AUTOBAHN (74, Vertigo/GB, relançado pela Warner em 84 e Elektra em 88, PolyGram/BR); CS - "Autobah" (75, Vertigo/GB); LP - RADIO-ACTIVITY (75, Capitol/EUA, EMI/BR); LP - EXCELLER 8 (coletânea, 75, Vertigo/GB); LP - TRANS-EUROPE EXPRESS (77, Capitol/EUA, EMI/BR); CS - "Neo Lights" (78, Capitol/EUA); LP - THE MAN MACHINE (78, Capitol/EUA); LP - RADIO ON (trilha sonora com as faixas "Radio-Activity","Ohm, Sweet Ohm" e "Trans-Europe Express", 79); CS - "Podet Calculator" (81, EMI); CS - "The Model"/"Computer Love" (81, EMI); LP - ELEKTRO KINETIK (coletânea, 81, Vertigo/GB); LP - COMPUTER WORLD (81, Warner/EUA, relançado pela Elektra em 88, WEA/BR); CS - "Showroom Dummies"/"Europe Endless" (82, EMI/EUA); EP - TOUR DE FRANCE (83,EMI/EUA/BR); LP - BREAKDANCE - THE MOVIE (trilha sonora com a faixa "Tour de France", 84, Polydor); LP - ELECTRIC CAFE (86, Warner/EUA, relançado pela Elektra em 88, WEA/BR)

NEU!: LP - NEU! (73, Brain/AL); LP - NEU! 2 (74, Brain/AL); LP - NEU! 75 (75, Brain/AL).

HARMONIA: LP - MUSIK VON HARMONIA (*,Brain/AL); LP - DELUXE (* Brain/AL)

MICHAEL ROTHER (com Jaki Liebzeit e Conny Plank): LP - FLAMENDEN HERZEN (77, Sky/AL); LP - STERNTALER (78, Sky/AL);LP - KATZENMUSIK (79, Sky/AL).

* Não foi possível precisar a data. Provavelmente entre o fim do Neu! e os discos solos.

CONVENÇÕES

LP - Álbum Simples; CS - Compacto Simples; EP - Extended Play. AL - Alemanha; BR - Brasil; EUA - Estados Unidos; GB - Grã-Bretanha.

Publicado originalmente na revista Bizz.

ADENDO (Fonte: Wikipedia)

Depois de anos sem apresentações ao vivo, o Kraftwerk voltou a fazer turnês novamente no final dos anos 90. Ralf queria tocar cada vez mais, mas a dificuldade em transportar os equipamentos analógicos limitou as viagens para fora da Europa. Após a saída de Flür e Bartos, vários outros músicos, como Fritz Hilpert e Henning Schmitz apareceram na formação do Kraftwerk.

Em meados de 1999, as gravações originais de Tour de France foram finalmente lançadas em CD, indicando um reinício das atividades da banda. O single Expo 2000, a primeira nova música em treze anos, foi lançado em Dezembro do mesmo ano, e posteriormente remixado por bandas de música electrónica como Orbital.

Em 2000, o ex-membro Flür publicou uma autobiografia na Alemanha, Kraftwerk: I Was a Robot, revelando vários novos detalhes sobre a vida da banda. Hütter e Schneider mostraram, no entanto, hostilidade à obra.

Em Agosto de 2003, a banda lançou Tour de France Soundtracks, o primeiro álbum desde Electric Café, de 1986. Em Junho de 2005, lançaram um álbum ao vivo, Minimum-Maximum, que foi compilado de apresentações durante a tour europeia do início de 2004, recebendo várias críticas positivas. A maioria das faixas consistia em releituras de antigas faixas de estúdio. O álbum foi premiado com o Grammy de melhor álbum de música electrónica. Juntamente com o CD, foi lançado um DVD que contém vários vídeos de apresentações em várias localidades no mundo.

No dia 5 de Janeiro de 2009, Florian Schneider anunciou a sua saída do Kraftwerk. Schneider era o penúltimo integrante da formação original da banda, da qual também foi um dos fundadores, onde permaneceu por mais de 30 anos.

Florian não se apresentava com o Kraftwerk desde a turnê nos EUA de Abril de 2008, e foi substituído nesses shows por Stefan Pfaffe (antigo colaborador da banda). Da formação original restou apenas Ralf Hütter

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