segunda-feira, 10 de maio de 2010

Os Anos 90 por Rafael jr

Jesuíno André, agitador cultural paraibano, continua sua saga para resgatar a memória do rock independente nacional dos anos 90. Recentemente ele publicou em seu blog um depoimento do nosso camarada Rafael jr (Snooze, Maria Scombona, Ferraro Trio, Orquestra Sinfonica de Sergipe, Banda do Corpo de Bombeiros, etc, etc, etc, forever and ever amen).

Reproduzo a entrevista abaixo:

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Uma das pessoas mais importantes da integração do cenário nacional nos anos 90, o músico sergipano Rafael Junior é responsável pela banda Snooze, grande nome do indie-rock brasuca, ícone de novas trilhas musicais na região. Foi editor do fanzine Cabrunco, também de projeção nacional, produziu shows bacanas na cidade; além de incentivador de novos talentos da cena de Sergipe. Bom observador dos tempos, sempre acompanha as atuais novidades sonoras com propriedade. De memória excelente e reflexões pertinentes, Rafael prestou um dos melhores depoimentos sobre o cenário independente nacional dos inesquecíveis anos 90. A seguir leia as principais partes:

Pra você o que significou musicalmente e socialmente os anos 90?

Uma abertura. E uma volta do rock na mídia de uma maneira mais intensa. Claro que o “boom” foi o resultado de um processo maturado nos anos 80, com a estruturação do mercado independente americano (selos, circuito de shows e festivais) e com o crescimento do público que estava alheio às bandas “synth pop” que dominaram o mercado da época. Na virada dos 80 para os 90, garotos como eu (que já curtia REM e rock nacional), no Nordeste brasileiro, puderam ter acesso a bandas como Pixies ou New Model Army, e uma molecada que nem era tão interessada em rock descobriu o Nirvana, catapultado pela energia juvenil do grupo. Foi um “start” na cena indie nacional, que só começou a se estruturar de verdade na metade da década de 90. A imprensa e divulgação nessa época pré-internet eram os fanzines, a tecnologia era a demo-tape gravada em estúdio sem know-how rock. Banda legal tinha de rodo, mas analisando hoje, mais criticamente, eu achava massa um monte de coisa que hoje não daria a mínima. Normal. Nessa época embrionária, já tinha banda se preocupando com boas capas e fotos, com um bom som e equipamento, com um release bem feito. Os cadernos culturais dos grandes jornais sempre tinham um espaçozinho para as bandas independentes.

Nas relações sociais e do jovem com a música, percebo que houveram dois pontos relacionados à “abertura” que falei lá no início: ao passo que surgiram várias ramificações e sub-gêneros dentro de alguns estilos (como o Hardcore e o metal, por exemplo), agrupando pessoas em tribos cada vez mais específicas, também houve uma libertação disso, com as pessoas se sentindo menos “culpadas” por ouvirem estilos musicais diversos. A cena de Pernambuco contribuiu pra isso, afinal qual o problema em dançar ciranda numa roda promovida por Lia de Itamaracá e depois pogar numa roda promovida pelo Ratos de Porão ou pelos Devotos? Ver cenas como essa num Abril Pro Rock da vida chocou muito neguinho, mas é isso aí, hoje é bem normal ouvir bossa nova, folk, indie rock e som pesado no mesmo dia. Isso não era muito comum nos anos 90.

Na sua avaliação, quais foram os destaques da música independente da época?

Olha, entre os primeiros covers que a Snooze tocou tinha Ramones, Pixies, Jesus and Mary Chain, Husker Du e… Pin-Ups! Essa banda de São Paulo teve uma importância lá no início dos 90, e seus ex-integrantes têm uma relação forte com a música até hoje, seja trabalhando na MTV ou montando outras bandas importantes nos anos 2000 (como Butcher´s Orchestra). Devo citar ainda Pelvs e Second Come no Rio de Janeiro, Killing Chainsaw, Garage Fuzz e Wry no interior paulista, Low Dream em Brasília, Velouria no Ceará e brincando de deus na Bahia. Algumas estão ativas até hoje, outras deram origem a outros grupos (Grenade, Mr. Spaceman). Foram precursores, mas tem muitos outros nomes. E antes teve o Harry, né? Fanzines eu citaria Tupanzine de Brasília, que existe até hoje, o sergipano Escarro Napalm, Esquizofrenia, Ahh! e Make No Sense de SP, Midsummer Madness/RJ, PapaKpica/PR, etc. Eu editava o Cabrunco Zine, teve boa repercussão na época também. Não dá pra lembrar de tudo, mas muito jornalista e crítico “top” de hoje teve zine ou coluna em jornal. Revista tinha pouca opção além da Bizz, algumas que começavam bem não duravam muito (Panacea, General, Zero, etc). Sempre gostei da Rock Press, que veio depois. Alguns caras deram um bom impulso no rock independente desde os anos 90: Fábio Massari e Zé Antônio com o Lado B da MTV, Abonyco Smith e Andhye Iore no Paraná, Rodrigo Lariú, Claudia Reitberger e Leonardo Panço no Rio, Jesuino André, George Frizzo e Alexandre Alves no Nordeste, todo o pessoal da Monstro Discos, que transformou o rock em Goiânia, Rogério Big Brother e Messias GB na Bahia, Jefferson Kaspar em Minas, e a paulistada toda: Ricardo Alexandre, Ricardo Tibiu, Marcelo Viegas, Humberto Finatti, Alexandre Matias, Gastão Moreira, Kid Vinil e seus programas de rádio, etc. É muita gente, me sinto injusto citando, porque esquece mesmo. Dos festivais: Abril Pro Rock/PE, Goiania Noise Festival, Punka/SE, Rock-SE, BoomBahia, Garage Rock/BA, ExpoAlternative/RJ, Juntatribo/SP. Outros festivais conceituados hoje, como o Porão do Rock/DF, Humaitá Pra Peixe/RJ e o MADA/RN, começaram no fim dos anos 90.

Cada década com sua peculiaridade, seja no âmbito artístico e ou tecnológico. Na sua opinião o que de mais importante aconteceu nos anos 90 em comparação à década anterior?

Vou falar de tecnologia de gravação, pra não ser repetitivo. É que nos anos 80 tudo era muito pomposo e aveludado, perdeu-se um pouco a crueza do rock. Claro que temos exceções, como o Sonic Youth ou as bandas da SST Records (Meat Puppets, Husker Du, Minutemen) e Dischord (Fugazi), por exemplo. Mas no geral o som dos discos dos anos 80 são pasteurizados, soam digitais, não me agradam. Foi uma característica da época. Os anos 90 mudaram isso. Som de guitarra e bateria na “cara”, tudo mais cru e soando como uma banda de rock soa numa sala de ensaio e gravação, o som não se transformava tanto. O grunge de Seattle e os Pixies ajudaram nisso aí, tu tinha uma produção boa e punch rock ao mesmo tempo. Também surgiram mais bandas “lo-fi”, como o Guided By Voices e Jon Spencer, precursoras (na verdade estavam só resgatando coisas velhas) de toda uma estética cultuada hoje. E tinha um selo grande lançando essas coisas (Matador)!O fim dos 90 foi o início de toda essa coisa característica dos anos 2000: gravações caseiras simples, auto-distribuição, multiplicação dos selos independentes, utilização de equipamentos analógicos e vintage dos anos 60 e 70, etc. Não só no rock, mas na MPB e até na música pop aconteceu o mesmo processo.

Especificamente sobre a cena independente de sua cidade e do seu estado o que mais marcou, mais destacou de importante no meio? Poderia citar nomes?

As coisas eram realmente difíceis no início dos anos 90 por aqui. Tudo: estrutura, espaços, som, patrocínio, divulgação, equipamento e qualidade das bandas, etc. Os shows eram muito esporádicos. No meio da década houve um boom no skate local e junto dos campeonatos tinham shows, de hardcore, metal e o tal indie rock ou rock alternativo. Aconteciam na pista de skate do Rato, no Bairro Industrial, ou em lugares públicos como a Orla de Atalaia, a pista da 13 de julho, a Universidade, o Parque dos Cajueiros, etc. Eu comecei a produzir shows numa casa chamada Mahalo Disco Club, numa avenida grande que liga o centro à praia e que é passagem de todos que saem a noite para bares e shows em geral. A movimentação chamava a atenção de quem passava. O dono era o Jajá, um figura, da Marinha Mercante, super aberto a qualquer banda de rock, empolgado com aquela efervescência. Podia ser metal, pop, punk, o cara não tava nem aí: “se virem com a divulgação e cuidem da portaria, a grana é de vocês. Eu fico com o bar”. Ele ficava de cara com a multidão na porta dia de sábado, aquele bando de moleques de preto, cabelos grandes e espinha na cara. Eu também me impressionava com a quantidade de gente que nunca tinha visto na vida, o fato é que tinha muito rocker de tudo quanto é canto da cidade, carente de show. Eu também ralava: saia de loja em loja pedindo patrocínio e colando cartaz, paralelamente ao trabalho caseiro de mandar e receber cartas, zines, flyers, filipetas de show, demos. Uma correria, mas o bom da adolescência é que a gente tem tempo pra essas coisas. Uma vez Jajá me chamou no canto e veio com um papo estranho: “olha a quantidade de gente que vem pra suas festas, você já pensou no poder do rock e da juventude?”. Eu não tava entendendo nada, só queria tocar com minha banda, mas ele tava falando em política. Queria me convencer a me candidatar a vereador! Hehehe. Hoje dou risada disso, mas realmente se aquela massa apoiasse uma pessoa do meio poderíamos conseguir muita coisa para a cultura em geral. Mas é claro que eu não tinha maturidade pra isso! Só queria “diversão e arte”! Foi mal aí, Jajá!

O fato é que, de 1996 a 1998, a gente lotou o lugar semanalmente, e a banda começou a pagar as próprias contas (não tirávamos mais do bolso pra pagar correio e estúdio de ensaio e gravação). Várias pessoas e tribos passaram a organizar seus shows (não só lá) e a cena da cidade tomou forma e força. Eu nunca contabilizei, mas acho que passaram umas 50 bandas de fora por lá, meus contatos de carta viravam telefonemas interurbanos diários e assim também rodei o Brasil (principalmente o Nordeste) com a Snooze, através de intercâmbio de shows. As demos da gente vendiam feito banana na feira, aqui em Aracaju e fora também, e o fato de passar clip da Snooze na MTV e vários jornais grandes terem publicado resenhas elogiosas nos trouxe credibilidade na cidade, na imprensa “normal” e no boca-a-boca da moçada: “os caras são conhecidos fora”. Uma coisa meio provinciana, é verdade! O público era fiel, e a gente começou a participar de várias coletâneas e fazer contato fora do país. Minha referência anterior em relação a isso era a Karne Krua, que já rodava nos fanzines punk desde os anos 80. Foi a primeira banda de rock a lançar um vinil aqui. Eu andava na loja do Silvio (vocalista da Karne Krua e precursor de tudo por aqui), comprava discos lá e era um ponto forte de divulgação, e dia de sábado um monte de gente se reunia pra trocar idéia e ouvir som. O primeiro disco da Snooze saiu no fim de 1998 por um selo de São Paulo (Short Records), e a essa altura já existiam festivais consolidados como o Punka, o Rock-SE estava em sua primeira edição, casas noturnas como o Tequila Café abriam espaço pro rock independente, bandas de fora do estado passavam sempre pela cidade, várias bandas locais gravavam material bom e rodavam por aí (com destaque para o Lacertae e o Warlord). Aconteciam shows na ATPN, no Cultart, no Espaço EMES (lá abrimos pra Raimundos, Planet Hemp, Ira!, etc), em galpões adaptados para festivais, em bares da orla, no interior do estado (Estância, Lagarto, Itabaiana), etc. A Snooze fazia tours maiores também pelo eixo Rio-SP e tocávamos muito em Salvador e em festivais maiores. Entrevistas em zines e revistas eram constantes, vários selos lançando nosso material em fita cassete, e começamos uma relação com a Monstro Discos, que começou no fim dos 90 e viria lançar nosso segundo disco, em 2002.

Uma coisa que nunca tivemos, nem nos 90 nem hoje, foi um selo que lançasse a produção local. Programas de rádio surgiram depois dos anos 2000, eu mesmo apresentei e produzi o “Playground” com um grupo de amigos. Hoje tem o Programa de Rock, comandado por Fabinho e Adelvan. A ATPN ainda abriga shows e festivais, e o pub do rock atualmente é o Capitão Cook, para shows menores. Já rolava algo nos anos 90 lá, mas não com a freqüência atual.

Particularmente o que mais lhe marcou nessa época?

Descobertas. De uma identidade, de algo pra me dedicar e fazer na vida. Conheci muita gente, fiz amigos, viajei o país. Acho que é o suficiente pra ter marcado minha vida.

Citando nomes importantes daqui:

Cróve Horrorshow – Principal nome do rock anos 80, inspirou alguns nomes posteriores. As atividades nos anos 90 foram esporádicas, mas tinham muitos fãs que formaram bandas

Silvio e Karne Krua + a loja Freedom (antiga Lokáos nos anos 90)

Adelvan Barbosa e Escarro Napalm Zine (também patrocinava shows pela madeireira do pai)

Henrique Teles e Maria Scombona – Antes de ouvirmos falar em Mangue Beat, já misturava rock e regionalismos por aqui, mas não participavam tanto da cena underground, fazendo mais shows em teatro, Universidade Federal e com artistas maiores

Desvio Padrão, Hemisférios e Filhos da Crise – Geração pop do fim dos 80/início dos 90 que não tinham muito a ver com o underground, mas tiveram sua importância relativa

Punks do subúrbio – Sublevação, Camboja, Words Guerrilla

Jamson Madureira e Fúria – Artistas plásticos do underground local, ilustravam cartazes, capas de discos, flyers. E também faziam exposições.

Paulinho e Lacertae (agitava tours fora e armava shows e festivais em Lagarto). Primeira banda sergipana a tocar no Abril Pro Rock, registraram boas gravações

Warlord (representante do metal sergipano anos 90, trazia bandas de fora)

Jajá e Mahalo Disco Club (o pub oficial do rock nos anos 90)

Espaço EMES – Apesar de não ser uma casa underground (na verdade é uma grande casa de espetáculos em geral), abriu espaço para bandas independentes abrirem grandes shows. O Punka já foi realizado lá, em duas edições.

Adolfo Sá e Cabrunco Zine

Sérgio Guerra e Venice Skate Shop (sempre apoiou shows)

Moskito Skate Shop (Idem)

Bruno Montalvão e Marginal Produções (produtora de shows e do Rock-SE)

Hilton Barbosa e Alexandre Hardman (produtores do PUNKA)

CD Club Locadora (patrocinador)

Geração punk rock do fim dos anos 90: Fluster, Gee-O-Die, Vitais (deram origem a várias bandas de destaque nos anos 2000, revitalizaram a cena com organização de shows, fazem a cena atual)

Infonet – O maior provedor local sempre abriu espaço ao rock, desde o início, divulgando eventos e publicando matérias.

Jornais: Cinform, Jornal da Cidade e Correio de Sergipe – Apesar da desinformação geral sobre a cena, os jornalistas e colunistas sempre tiveram boa vontade em divulgar qualquer evento underground através de matérias ou da agenda.

Jornal O Capital – Veículo underground editado pela jornalista, poeta e cineasta Ilma Fontes, voltado mais à Poesia e Literatura, conhecido internacionalmente e com mais de 20 anos de atividade. Sempre abriu espaço para a música underground, artes plásticas e demais produções locais.
pinups

Bandas que passaram por aqui na época de efeversência (e algumas já no início dos anos 2000):

BA: Úteros em Fúria, Brincando de deus, Dinky-Dau, Penélope Charmosa, Lisergia, Inkoma, Bosta Rala, Dr. Cascadura, Dead Billies, Retrofoguetes, Maria Bacana, Crotalus, Zona Abissal, HeadHunter DC, Stone Bull, Jupter Scope, Arsene Lupin, Brinde, The Honkers, Ronei Jorge & Os Ladrões de Bicicleta, Catapulta.

AL: Living In The Shit, Ball (banda do Wado), Spring, Mopho.

SP: Concreteness, WRY, Trap, Pin-Ups, Street Bulldogs, Garage Fuzz, Ratos de Porão.

GO: Mechanics, Johnson´s.

PE: Mundo Livre S/A, Nação Zumbi, Eddie, Dona Margarida Pereira e os Fulanos, Supersoniques, Badminton, Vamoz!

RJ: Pelvs, Cigarettes, Jason, Leela.

MG: Ragnarock, Diesel, Pato Fu.

RS: Wander Wildner, No Rest.

Outros: Dead Poets/CE, Kafila/PI, Dead Fish/ES, Mukeka Di Rato/ES

Certamente tô me esquecendo de um monte de banda!

Fonte: Meus Sons

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