quinta-feira, 2 de setembro de 2010

O Rock Sergipano, esse desconhecido

"Underground" é um termo em inglês que serve para designar aquilo que se encontra embaixo do solo. O metrô, por exemplo, em muitos lugares é chamado de underground. Com o tempo, os críticos musicais se apropriaram deste termo para designar a musica que era feita à margem do grande circuito da mídia. A mídia, em todo o mundo e, como não poderia deixar de ser, também em nosso país, se concentra onde está o dinheiro, literalmente, ou onde se encontram os centros de poder econômico e de decisão política, no nosso caso, sul e sudeste e eventualmente Brasília. Partindo-se desse ponto de vista, poderíamos dizer que qualquer manifestação artística nascida em nosso estado (com exceção, vá lá, da Calcinha Preta, que tem projeção nacional) é underground, porque está longe dos holofotes da mídia, num âmbito geral. Mas existem correntes artísticas que se desenvolveram ao largo mesmo aos olhos da mídia local. Este, poderíamos dizer, é o nosso submundo, o submundo do submundo. Nele se encontra o rock sergipano, esta entidade misteriosa que, a despeito de ser quase que completamente desconhecido, existe, produz e se reproduz, ao ponto de começar a ser, timidamente, notado e reconhecido.

O rock sergipano como um movimento, uma entidade oriunda da existência de várias bandas que tocam juntas e dão suporte umas às outras, começou a se formar no inicio dos anos 80, de carona na grande onda do rock nacional, que por sua vez surgiu na esteira da onda pos-punk/new wave que tomava conta do mundo. Por essa época começavam a se formar bandas de garagem que tinham na precariedade de recursos e na vontade de criar e se comunicar suas principais características. Capitaneadas pela figura de verdadeiros agitadores culturais dos subterrâneos, como Sylvio “Suburbano” e Vicente “Coda”, surgiram nomes como Sem Freio na Língua, Fome Africana e The Merdas. Esta ultima, por sinal, contava em suas fileiras, como baterista, com o hoje nacionalmente conhecido Hélder “Podre”, mais conhecido pelo nome artístico de DJ Dolores. Vicente promovia festivais conhecidos na época como rockadas - um deles, inusitadamente, realizado em sua própria casa - e Sylvio seguia a passos largos em direção a uma militância anarquista que o levou ao mundo do punk rock engajado. Juntos, os dois formaram a Karne Krua, a mais antiga das bandas sergipanas em atividade até o momento.

A partir dessas atitudes pioneiras outros grupos foram nascendo, e de diversas matrizes, como a new wave propriamente dita, com CROVE HORRORSHOW, LULU VIÇOSA, ALICE e a já citada FOME AFRICANA, o punk rock/hardcore, com KARNE KRUA, MANICÔMIO, FORCAS ARMADAS, CONDENADOS e LOGORRÉIA, entre outros, e correndo por fora, numa cena à parte, como sempre, o mundo do metal, que tinha como seu maior nome o lendário GUILHOTINA. Os espaços para apresentação eram precários, mas as tribos tinham seus pontos de encontro, notadamente as lojas especializadas DISTÚRBIOS SONOROS e LOKAOS e inclusive contaram, durante um certo período, com o apoio de um programa especializado na Rádio Atalaia FM. Chamava-se ROCK REVOLUTION, era produzido pela loja Distúrbios sonoros e costumava, sempre que a qualidade de gravação permitia, ceder espaço para as bandas locais.

Com o tempo a maioria dos grupos foi se dissolvendo e seus membros sendo absorvidos pelo “sistema”, mas alguns resistiram. A Karne Krua é o exemplo maior de persistência e fidelidade à cena, tanto local quanto nacional. Ao seu redor foi surgindo uma nova onda de hardcore sergipano, materializada principalmente nas bandas SUBLEVAÇÃO, CLEPTOMANIA, OLHO POR OLHO e LECKTOSPINOISE, além de um sem-número de grupos que seguiam uma tendência ainda mais rápida e barulhenta do estilo conhecida como grindcore, dentre elas REFUGOS DE BELSEN, CAMBOJA, e ANAL PUTREFACTION . Aos poucos, esta última foi se aproximando do Death Metal, enquanto o Camboja, capitaneado na figura de seu líder e multiinstrumentista Jamson Madureira, começa a sofrer influencias do rock industrial à la Ministry e Nine Inch Nails, tornando-se a mais inovadora e, talvez por isso mesmo, injustiçada banda da história do rock sergipano. Teve uma carreira curta mas deixou um belo legado de energia e criatividade para quem conheceu suas demos (GRIND TO GRIND, LIES ABOUT FREEDOM) e frequentou suas apresentações, sempre antológicas.

Já no front do metal, na primeira metade da década passada, despontava a DEUTERONÔMIO, fundada ainda nos anos 80 por Vicente Matheus, o Bruxo (de saudosa memória). A banda teve uma carreira sólida e constante até a metade dos anos 90 e influenciou toda uma cena, com nomes como MUCOUS SECRETION e a DEVILRY, de Itabaiana. No metal tradicional havia o WARLORD, e no thrash metal, AGONY SEASON, RUST MAKERS e METÁFORA (formada por um membro dissidente do Camboja).

Foi ainda no inicio dos anos 90, em parte como fruto da explosão alternativa causada pelo Nirvana, que surgiu o SNOOZE, hoje uma das bandas sergipanas mais conceituadas e conhecidas nacionalmente, ao lado do LACERTAE, de Lagarto. Ambas começaram a mesma época e fazendo covers, a primeira de medalhões do grunge e do rock alternativo, a segunda de Pantera e outros ícones do metal, mas foram aos poucos adquirindo sonoridade e personalidade própria, especialmente o Lacertae, que é reconhecido como um dos grupos mais inovadores do rock independente nacional. Foi por essa época que a Karne Krua conseguiu o feito de ser a primeira banda underground do estado a lançar um disco, ainda em vinil e totalmente independente.

Ficaram célebres os shows promovidos pelo pub MAHALO DISCO CLUB, simpático barzinho localizado no centro, em frente à UNIT, que começou a abrir espaço para as bandas de rock locais nos finais de se mana, e o fervilhante movimento de fanzines sergipanos, que já tinha uma certa tradição desde o CENTAURO SEM CABEÇA (de Macaô) e BURACAJU (de Sylvio, sempre pioneiro), nos anos 80, e se fortaleceu à época com os nacionalmente conhecidos ESCARRO NAPALM (editado por mim, Adelvan, depois vocalista do ETC) e CABRUNCO (que era editado por Adolfo sá e se tornou um verdadeiro marco).

Na cena grindcore/noise surgiu a banda ETC, que tinha uma proposta mais irreverente e ousada. Foi a primeira a ultilizar-se de influências regionalistas em sua musica (bem antes de alguém por aqui saber o que era Raimundos ou mangue Beat) e a usar e abusar de palavrões e de temas ligados ao sexo e a sacanagens em geral, conseguindo bater de frente com punks e puritanos de uma só vez. Sua proposta anárquica radical foi mal compreendida na época e segue incompreendida até hoje, nos shows esporádicos que promove com o único intuito de manter a lenda viva e provocar os que se entregam à apatia e aos modelos de comportamento, mesmo no mundo do rock, que a princípio deveria ser dinâmico e anárquico por natureza. Vale dizer que a grande figura por trás dessa e de outras bandas era, mais uma vez, a de Sylvio “Suburbano”, que depois do fim das atividades regulares do ETC seguiu sua saga em busca da renovação do harcore montando bandas como A CASCA GROSSA e WORDS GUERRILLA.

Por volta da segunda metade da década, a movimentação no underground diminuiu, mas começou a se vislumbrar um novo patamar para a cena como um todo. O marco dessa nova etapa foi a realização do Festival ROCK-SE, que trouxe pela primeira vez ao estado um evento nos moldes dos já consagrados Juntatribo e Abril pro Rock, com bandas nacionalmente reconhecidas tocando lado a lado com os representantes da cena local. O ROCK-SE não teve continuidade, mas lançou a semente para um novo paradigma no nível de organização e, especialmente, ousadia dos produtores de shows que o sucederam. Começaram a aparecer mais bandas de fora do estado dispostas a se apresentar aqui, o que deve ter influenciado o surgimento de uma nova geração do punk rock sergipano, dessa vez mais sintonizada com as tendências mundiais colocadas na vitrine por megacorporações como a MTV e, por isso mesmo, ideologicamente descompromissadas e com um apelo popular mais amplo.

Tendo como pano de fundo a verdadeira revolução das comunicações que se consolidava na virada do milênio, o que parecia impossível na década de 80 aconteceu na primeira metade dos anos 2000: o rock foi sendo aparentemente melhor assimilado e foi capaz de levar verdadeiras multidões a shows que antes eram freqüentados por, no máximo, 20 a 30 pessoas. E com um importante fator adicional: as mulheres comparecendo e aparecendo. Houve inclusive uma banda exclusivamente feminina, LILY JUNKIE, a primeira do estado a manter uma atividade regular, fazendo shows e lançando demos. Apesar de um posterior recrudescimento na freqüência do público, o que inviabilizou a continuidade de projetos importantes como o Festival PUNKA, novos nomes surgiram, como FLUSTER (HC melódico), TRISTE FIM DE ROSILENE, THE RENEGADES OF PUNK, MERDA DE MENDIGO e GEE-O-DIE (hc casca grossa curto e grosso, mais na tradição do que sempre foi feito cidade), SONNET (rock alternativo), PLÁSTICO LUNAR (psicodélico) NAURÊIA e MARIA SCOMBONA (regional) , THE BAGGIOS (Blues-rock), MAMUTES (Hard rock “setentista”), BAD SNAKE (Hard rock “oitentista”) e NANTES (folk rock), dentre outros.

O front do metal seguiu firme, com nomes egressos da década de 90 se mantendo em evidencia, como SCALET PEACE (doom metal), TCHANDALA, FINITUDE e ALIQUID (metal tradicional), BERZERKERS e IMPACT (Thrash), NUCLEADOR (Crossover), INRISÓRIO (Death/grind), SIGN OF HATE (Death Metal) e MYSTICAL FIRE (black metal), este ultimo com uma mise-em-scene de palco impressionante, com direito a cuspidas de fogo e cabeças de porco como cenário.

Não saberia dizer até onde as pessoas que estão ajudando a fazer o rock sergipano hoje em dia foram influenciadas ou, sequer, conhecem os esforços que foram empreendidos no passado para a construção desta pequena porém orgulhosa cena. O que importa é que a chama continua acesa e assim permanecerá. Mudará de forma, se adaptará à passagem do tempo, mas nunca se extinguirá.

Matéria originalmente publicada no site da extinta Revista [Zero]

por Adelvan Kenobi

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