segunda-feira, 16 de julho de 2012

Histórico ...


Pouco depois da meia-noite, meu táxi chega a uma casa noturna chamada Vortex. O clima é seco, e a vizinhança, como o resto de Londres, é um distrito comercial com um olho nos turistas. Meio quarteirão à frente, cerca de dez adolescentes vestidos como agentes funerários de filmes de terror pulam e batem uns nos outros. O cabelo deles é curto, jogado para trás com gel ou penteado para cima com pomada ou vaselina e talco. Xingando uns aos outros em um forte sotaque de proletariado, os rapazes finalmente descem a rua enquanto outro táxi para na entrada do lugar. Um homem de cabelos ruivos encaracolados, moderadamente longos, rosto pálido e suéter preto sai de dentro do veículo. É Malcolm McLaren, empresário do Sex Pistols, a banda punk mais notória do mundo, que me fez sair de Nova York para conhecê-la e vê-la tocar.
McLaren vem me evitando há dois dias. Eu me apresento e sugiro que nos encontremos logo. McLaren some para dentro do Vortex e passo a noite inteira sem conseguir encontrá-lo de novo. A densa plateia dentro do lugar é composta de uns poucos curiosos e de 400 a 500 adolescentes cadavéricos vestidos de preto ou cinza. A maioria tem o cabelo tingido em variações de rosa, verde e amarelo. A música alta mistura novidades e reggae, aos quais os garotos reagem com quase tanto entusiasmo quanto dedicam ao punk rock. A dança é frenética quando uma banda de garotas chamada Slits entra no palco. O estilo é chamado pogo – pular caminhando com os braços balançando. Todo mundo está sujeito a um empurrão. A pista está empanturrada de seres humanos suarentos, e ficando cada vez mais cheia a cada música. Os roadies no palco e alguns fãs jogam copos de cerveja uns nos outros.
Mais tarde ao sair do Vortex, reconheço o baterista do Sex Pistols, Paul Cook, também deixando a casa. Desacompanhado, ele veste uma camiseta sem mangas, um jeans reto e tênis detonados. O nariz é largo, a pele é pálida. Condicionado por seis meses de relatos sobre a propensão do Sex Pistols à violência, quase espero que ele me ataque. Mas sua mão é mole quando nos cumprimentamos e seus olhos não encaram os meus quando me apresento. Ele é tímido. “Parte da imprensa está até tentando ligar vocês aos fascistas”, falo. “Nem me dou ao trabalho de me importar com essas merdas”, ele responde. “Isso é o que eles querem enxergar de tudo isso. Quando começamos a tocar, antes de todas essas matérias saírem, as pessoas vinham e diziam que nunca tinham visto nada tão divertido na vida.”
Passei a tarde seguinte em meio a recortes de reportagens sobre a banda no escritório do Sex Pistols – duas salas sombrias e cinzentas no último andar de um pequeno edifício comercial a poucos quarteirões de Piccadilly Circus. O arquivo de matérias de quase 1 metro mostra que a banda está tão imersa em uma névoa mitológica que chega a ser impossível discernir a verdade. A imprensa publica tudo o que consegue imaginar. A imagem do Sex Pistols enquanto fruto proibido é ampliada. Mas a banda tem se encaminhado rapidamente para a superexposição em sua terra natal. Levando as letras do punk no sentido literal, os jornais proclamam o movimento como o fim da civilização ocidental.
O telefone toca e é McLaren. Eu me ajoelho diante de sua assistente e escrevo “POR FAVOR!” no meu caderninho. Ela se apieda de mim e deixa que eu fale com ele por um instante. Para minha grande surpresa, ele me convida para ir a seu apartamento no começo da noite. Expresso minha gratidão sincera e saio com o guitarrista Steve Jones para um estúdio de gravação. Jones tinha acabado de chegar ao escritório para ver algumas fotos de divulgação. De longe, ele é o Pistol com aparência mais saudável, parecendo uma mistura de mineiro de carvão com um conquistador garanhão. Mas seu aperto de mão é tão molenga quanto o de Cook. Sigo Jones para o estúdio onde o Sex Pistols está dando os toques finais no álbum. Uma das coisas que mais me espantam no movimento punk, eu digo a Jones, é que parece antissexo – garotos e garotas que se tornam tão feios e mutilados que qualquer atracão física se torna impossível. Sid Vicious, por exemplo, o notório baixista da banda, se descreveu em uma matéria como “um monstro assexuado”, totalmente entediado com o assunto. “Sid disse isso?”, diz Jones. “Ele tava zoando.”
Logo quando chego, encontro Sid Vicious no lounge do estúdio, ele tenta se justificar. “Eu me sentia um monstro assexuado porque na época minha cabeça estava raspada e eu usava esse fraque horrível, quatro números maior que o meu. Não tinha dinheiro para comprar roupas, e as pessoas corriam quando me viam descendo a rua. Chegava a ser engraçado”, diz. A voz de Vicious tem um tom bobo meio absurdo, que deixa engraçado quase tudo o que ele fala. Magrelo, está vestido com uma jaqueta preta sem camiseta alguma por baixo e coturnos enormes. Seus dentes parecem estar sem escovar há vários anos. O comprimento de seu cabelo é de mais ou menos uns 5 centímetros, espetado em ângulos estranhos. Várias cicatrizes vermelhas se destacam em seu plexo solar. “Teve uma noite que ninguém estava prestando atenção em mim, aí resolvi cometer suicídio”, ele explica, arrotando alto. “Fui ao banheiro, quebrei um copo e rasguei meu peito com ele. É um belo modo de chamar a atenção. Vou fazer isso de novo – principalmente porque não funciona. Todo mundo disse para eu ir me cortar direito e me ignorou.” Ele ri da própria conclusão sem lógica, acrescentando: “É melhor você não me fazer de idiota nessa sua matéria”.


Vicious cursou o ensino médio com o vocalista Johnny Rotten. “Éramos dois filhos da puta bem grudados”, diz ele. “Ele era o cara mais escroto que eu já tinha conhecido – todo torto, sem cabelo, meio corcunda, pé chato. Todo mundo odiava ele. Todo mundo também me odiava. Nós dois nos odiávamos, mas ninguém mais falava com a gente, por isso a gente enchia a cara e ficava batendo boca um com o outro. Rotten contava para as pessoas que teve que cortar suas hemorroidas com uma gilete, porque ficavam penduradas na calça, e eles acreditavam. Ele também falava que os negros tinham pelo no céu da boca. E acreditavam nisso também.” Vicious largou a escola depois de arrumar um diploma por meios escusos, que usou para abrir algum tipo de negócio ilícito que ele se recusa a especificar. Seu primeiro contato com a imortalidade foi em um dos primeiros shows do Sex Pistols. “Eles eram o único grupo que eu tinha vontade de ver”, conta. “Eu não sabia dançar, aí ficava pulando e trombando nas pessoas. Então, todo mundo começou a fazer a mesma coisa, mas não faziam direito, por isso parei.”
“Você vai ter sobre o que cantar quando for rico?”, pergunto.
“Não acho que vamos virar milionários algum dia. Não fico pensando no futuro. Não tenho nem ideia.”
“Com todo o dinheiro que você ganha, ainda não comprou um apartamento?”
“Não ganhei nada.”
Vicious puxa os bolsos para fora. Uma moeda cai no chão. “Olha, eu só recebo na sexta, e quando chega a segunda não tenho mais nada. Dinheiro nenhum.”
Malcolm McLaren, que tem a reputação de chegar duas horas atrasado para tudo, está também duas horas atrasado para o nosso encontro em seu apartamento. Quando McLaren chega, depois da meia-noite, ainda veste o suéter preto esfarrapado que vi há várias noites. Pergunto por que ele apresentou o New York Dolls, banda norte-americana com quem se envolveu antes dos Pistols, como comunistas.
“Foi só uma ideia”, ele diz. “O rock é só música. Você também está vendendo atitude. Tire a atitude e você vira alguém comum, como os grupos de rock dos Estados Unidos. O Sex Pistols surgiu porque nas ruas do Reino Unido estão dizendo: ‘O que é esse lixo sessentista? Pagar 5 libras para ver um tampinha tocar, enquanto dependo do seguro-desemprego para viver?’ A molecada precisa de um senso de aventura, e o rock precisa encontrar um jeito de dar isso a eles.” O empresário não tem ilusões sobre o mercado musical: “Adoro ir pelo caminho mais difícil. Mantém você esperto e percebendo a verdade. Muitas das bandas novas são sugadas pelas gravadoras. Todos esses presidentes de gravadoras são umas putas. Há dois meses, os porteiros deles teriam nos jogado na rua. Hoje, vendemos um punhado de discos e eles ligam querendo fotos com a gente. Mo Ostin [da Warner Bros. ] está vindo de avião com seu advogado amanhã, e antes eu não conseguia nem passar de sua secretária. Já entrei e saí da CBS muitas vezes. Walter Yetnikoff [presidente da CBS] cantou ‘Anarchy in the U.K.’ para mim durante um café da manhã no Beverly Wilshire, só para provar que conhecia a banda. Ele disse que não se sentiu ofendido quando Johnny Rotten falou que era um anticristo. ‘Sou judeu’, ele disse”.
O telefone toca e McLaren atende. “O que foi? Elvis Presley morreu?... É triste, não? Como se seu avô morresse... É, pena que não foi o Mick Jagger.”
Sid Vicious não poderia ter descrito o colega Johnny Rotten (nome de batismo: Lydon) com mais precisão: todo torto, meio corcunda, quase transparente de pálido, cabelo curto tingido de laranja-brilhante – sem dúvida, o cara mais escroto que já conheci. Ele está vestindo uma camiseta adornada com a palavra DESTROY e uma suástica, calças de couro preto e aqueles sapatos pretos bizarros que têm o formato de uma canhoneira. Seu aperto de mão é o mais mole de todos. “Você, uh, prefere ser chamado de John?”, pergunto.
“Isso”, ele diz. “Desprezo o nome Johnny Rotten. Não falo com ninguém que me chame assim.” Sua voz seria capaz de transformar o Pai Nosso em algo brutalmente sarcástico. Por ter aprendido, provavelmente, que se olhar nos olhos de alguém por tempo o suficiente a pessoa vai começar a achar que você sabe que ela é uma fraude (porque no fim das contas todo mundo é uma fraude), Rotten me encara com uma autoconfiança demoníaca, ameaçando me reduzir a balbucios incoerentes. O efeito geral, entretanto, faz surgir um instinto maternal que eu nem sabia que tinha. A noção de que esse anão enfermo carrega a fúria de uma nação inteira nos ombros acaba sendo reconfortante.
“Quer dividir com o mundo algum comentário sobre a morte de Elvis?”
“Esse trolha já vai tarde pra caralho”, ele rosna. “Estou pouco me fodendo, e ninguém mais liga também. Só é divertido fingir simpatia, é só isso que estão fazendo.”
“É verdade que você costumava dizer que teve que cortar suas hemorroidas com uma gilete?”
“É, fiquei sem ir à escola por três semanas. Os professores me mandaram flores. Sou um mentiroso abominável.”
“Como você ficou assim?” Me arrependo da pergunta assim que ela sai da minha boca, mas não há volta.
“Saindo com gente que pergunta esse tipo de merda. Cuzões que acham que esse tipo de coisa não merece ser cuspida em cima.”
Na manhã seguinte ligo para a casa de McLaren e ele promete me dar uma carona até Wolver Hampton, um subúrbio de Birmingham, para o primeiro show da “turnê de guerrilha” do Sex Pistols pelo Reino Unido. Já que foram banidos de todos os lugares, eles vão tocar com nomes falsos. Hoje o grupo chama Spots, um acrónimo de Sex Pistols on Tour Secretly (“Sex Pistols em Turnê Secretamente”).
McLaren não me liga de volta para explicar como faço para pegar minha carona, então vou de trem na última hora. Wolver Hampton é um buraco industrial que lembra Cleveland, se Cleveland tivesse sido construída 200 anos antes. O Club Lafayette fica no meio de um bairro operário barra-pesada. Uma fila de cinco ou seis pessoas de largura tomou todo o quarteirão. Lá dentro, o lugar está lotado de jovens entre o fim da adolescência e os vinte e poucos anos. Exceto por um garoto que pintou a pele de verde (ou seria um efeito da pouca luz?) e uns poucos outros usando a parafernália punk, a plateia usa roupas normais. Eles pogam ao som da música gravada, entretanto, com até mais intensidade que o pessoal do Vortex. As brigas se tornam mais frequentes e mais violentas.
“Vocês têm que se controlar”, pede o DJ pelo sistema de som, “ou os Spots não vão tocar!” A plateia responde com um canto de torcida de futebol. À meia-noite, o Sex Pistols finalmente emerge do camarim. A pressão perto do palco, que tem menos de 1 metro de altura, é literalmente inacreditável e conflitos com os seguranças logo surgem. As pilhas de auto-falantes balançam para a frente e para trás, ameaçando tombar. A banda aumenta o som e Rotten rosna a risada demoníaca do começo de “Anarchy in the U.K.”
Algum garoto deu um murro e furou um dos alto-falantes. Outros pisaram nos fios e derrubaram alguns equipamentos eletrônicos. A música é quase ininteligível sobre o barulho ambiente, exatamente como a anarquia deve soar. O público poga freneticamente. Paul Cook está escondido, mas soa bem. A guitarra de Steve Jones evita firulas, mas faz um trabalho benfeito. Sua expressão é sincera – como uma estrela de basquete colegial prestes a cobrar um lance livre decisivo – que ele quebra só quando decide cuspir na plateia a cada poucos minutos.
O baixo de Sid Vicious é energético e sem sutileza. Ele está acordado há dois dias, e tenta tirar um cochilo entre um lick e outro. Ainda ostentando sua camiseta com a suástica, Rotten é o artista mais cativante que já vi. Ele não faz muita coisa além de rosnar curvado no palco; são os olhos que matam. Eles não perfuram, espancam. Vários roadies grandalhões se juntam aos seguranças para formar uma parede sólida em frente à banda. Rotten está oculto por ela, por isso sobe em cima de um retorno, se pendura no teto com uma mão e segura o microfone com a outra.
A banda consegue passar por “I Wanna Be Me”, “I’m a Lazy Sod” e “No Feeling” com o sistema de som relativamente intacto. “Pretty Vacant”, o single atual, faz o público berrar o refrão a plenos pulmões: “A gente é tão/Oh, tão vazio/Vazio/E não estamos nem aí!” Pela primeira vez, vejo Johnny Rotten sorrindo – é breve, mas é um sorriso. O refrão de “God Save the Queen” – “Sem futuro, sem futuro, sem futuro pra você” – fecha o set. “No Fun” é o bis e detona de vez o sistema de som.
Estou feliz por ter gostado. Sid Vicious simboliza o quão perto o rock vai conseguir chegar do ideal de Huckleberry Finn nesta década. Espero que, assim como o personagem de Mark Twain, Vicious consiga explorar novos territórios antes de se transformar em mais um ego perdido. Não consigo deixar de gostar de Malcolm McLaren. Se ele fosse um mero manipulador, não teria escolhido um grupo de fodidos tão genuínos para a banda. Se fosse meramente ganancioso, poderia ter encontrado meios mais fáceis de tornar o Sex Pistols a banda número 1 do planeta. Ele escolheu não a política do tédio, mas a da divisão: amputar os liberais sessentistas babacas de seu apoio da classe operária.
E Johnny Rotten contou ao Reino Unido inteiro que precisou cortar suas hemorroidas com uma gilete, e os idiotas acreditaram fielmente. Mas não paro de pensar naquele breve sorriso de Rotten durante “Pretty Vacant”, no Club Lafayette. Será que queria dizer: “Olha como eu sou incrível!” ou então: “Olha como estes moleques estão se divertindo!”? Sempre existiram estradas bem divergentes no rock and roll. O Sex Pistols escolheu a menos manjada e a que tem feito toda a diferença.

Cara a Cara com o Sex Pistols

Há 35 anos, em 1977, a Rolling Stone EUA rumou à Inglaterra para saber quem eram aqueles novos delinquentes musicais surgidos na terra da rainha.

COPYRIGHT © 2011 - ROLLING STONE BRASILP. ESCARRO NAPALM UNAUTHORIZED REPRODUCTIONS INC.por CHARLES M. YOUNG | TRADUÇÃO: J. M. TREVISAN
ORIGINAL AQUI



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