domingo, 10 de novembro de 2013

Modern life is rubish.

Um bulldog tipicamente inglês se estende no carpete, com os olhos baixos e deprimidos. A voz em off explica. "Há 18 anos, somos governados pelos mesmos líderes. Ainda temos o talento, as habilidades e a criatividade de sempre, talvez mais". O cachorro adormece enquanto o narrador fala da perda de propósito da Inglaterra, em um mundo em constante mudança.

A perspicácia do vídeo de campanha de Tony Blair ao gabinete do Parlamento Inglês, em 1997, é retratar um símbolo da fauna do país como um pequeno-gigante adormecido, enquanto apela para termos queridos à juventude como "talento" e "criatividade". Uma estratégia de marketing meticulosamente montada.

Para passar uma imagem revigorante, Blair aproximou-se do mundo pop como nenhum outro político. Trocou cabeçadas com o astro da seleção inglesa Gary Lineker, jogou partidas públicas de tênis e até arranhou para as câmeras alguns acordes em sua guitarra, guardada desde os tempos de faculdade. Sua cartada principal era cooptar para sua campanha os jovens astros da música britânica, envolta na metade dos anos 1990 em uma onda de nacionalismo kitsch chamada Britpop.

Um dos alvos de Blair era o guitarrista Noel Gallagher, do Oasis. O desbocado roqueiro foi promovido em algum tempo a cabo eleitoral por seu comprometimento em rasgar seda publicamente para o futuro primeiro-ministro. O outro era Damon Albarn, do Blur. O vocalista e compositor da banda de Essex, ao nordeste de Londres, simpatizou no início, mas não embarcou no projeto e se disse manipulado. Arquiteto do Britpop, o músico abandonou sua obsessão pelos modismos ingleses no mesmo ano em que Blair assumiu o poder. Mas, 15 anos depois, a nostalgia bateu. Quem for ao show do Blur no Planeta Terra neste sábado 9 pode esperar um desfile de ótimas canções com sotaque inglês, feitas literalmente para inglês ver.

De 1993 a 97, os artistas do Britpop reverenciaram os pilares da cultura britânica. O ônibus de dois andares, a tropa real e seus capacetes felpudos, a paixão por jogos de azar, o fim de semana tedioso em parques. O patriotismo estava em todos os campos da arte. Em uma instalação, o artista plástico Damien Hirst expunha uma ovelha em um tanque de formol. Em Trainsportting, o cineasta Danny Boyle tratava do vício em heroína, mas também em pints de cerveja, corridas de cavalo e fish and chips. O estilista Ozwald Boateng resgatava os terninhos justos do Mod dos anos 1960 em seus desfiles. E claro, o Oasis insistia no símbolo cultural mais manjado do Reino Unido: os Beatles.

Antes de todos veio Damon Albarn. Em 1992, o Blur tinha dois hits razoáveis, reconhecimento mediano na Inglaterra e esforçava-se para cruzar o Atlântico. Naquele ano, realizou uma turnê de 44 shows pelos Estados Unidos, um desastre total. Eram casas pequenas, públicos minguados, desinteresse por tudo que não fosse Nirvana e o grunge, brigas entre integrantes e caos financeiro. Como muitos dos shows eram em cidades interioranas, foi a chance de Albarn conhecer mais de perto a pobreza cultural da classe média americana. E perceber como os britânicos a emulavam. O compositor passou a refletir sobre a mesma “perda de propósito da Inglaterra” que levaria alguns anos depois o bulldog de Tony Blair aos roncos.

O segundo álbum do Blur, Modern Life is Rubbish, de 1993, é o disco de menor sucesso comercial da carreira. Vendeu cerca de 15 mil cópias, número irrisório até para bandas independentes. Mas poucos discos definiriam tanto o modus operandi da cultura britânica da metade dos anos 1990. Nas letras, há um vértice indiscutível: a Inglaterra em meio “aos enlatados do USA”.

Para quem não conhece e imagina canções de protesto de um Renato Russo inglês, o disco não é revoltado; a crítica deságua em humor. Em “Advert”, Albarn fala das propagandas e suas promessas de férias paradisíacas e curas para dores de barriga. Na faixa seguinte, descreve o personagem “Colin Zeal”, uma espécie de coxinha britânico, bronzeado e politicamente correto, cujo principal objetivo na vida é ser pontual. Em “Chemical World”, fala do baixo preço das drogas, entre elas a mais americana de todas: o açúcar. Em “Villa Rosie”, descreve um autêntico happy hour nos subúrbios. Nada falta ao panorama de uma “Inglaterra sem propósito”, adepta do consumismo desenfreado.

O tímido sucesso comercial explica-se: não havia clima para uma banda falar dos costumes americanizados dos britânicos quando o grupo de maior sucesso no país era dos Estados Unidos. A morte do líder do Nirvana, Kurt Cobain, em 1994, abriu uma lacuna na música pop mundial. Foi com o lançamento no mesmo ano do álbum Parklife que o Blur convenceu seus conterrâneos de seu projeto artístico. Enquanto “Girls and Boys” descrevia a predileção dos ingleses por passar férias regadas a sangria e swing nas ilhas gregas, a faixa-título expunha a realidade dos pacatos frequentadores de parques ingleses. Capitaneado pelos dois hits, o disco vendeu mais de um milhão de cópias.

Na cultura pop, projetos ambiciosos costumam virar trilogias. The Great Escape, o quarto disco do Blur, voltou a abusar da fórmula dos dois discos anteriores, mas com uma nítida perda de fôlego. A briga com o Oasis pelo topo das paradas revelou as ironias do sucesso. Ao falar mal do Reino Unido americanizado, o Blur não havia despertado uma consciência crítica entre seus fãs. Pelo contrário, havia uma tendência de enaltecer os personagens de suas canções, antes de demonizá-los. Um elogio à mediocridade britânica.

Tony Blair aproveitou-se desse nacionalismo superficial para chegar ao poder. Quando assumiu o Parlamento, o Britpop era quase um cadáver. Responsável por sua criação, o Blur ajudou a sepultá-lo, ao gravar naquele ano um disco homônimo bastante influenciado por bandas de rock americanas como Pavement e Guided By Voices. Autêntico em suas origens, o Britpop perdeu sentido em meio a muitas drogas e brigas por sucesso. Tornou-se aquilo que expunha: um enlatado.

Após 20 anos do lançamento de Modern Life is Rubbish, o Blur veio ao Brasil para seu segundo show. No primeiro, em 1999, os ingleses focaram em seu sexto disco, 13, e tocaram apenas três ou quatro músicas da fase áurea do Britpop. Por outro lado, o show no festival Planeta Terra deste fim de semana deu bastante destaque à trilogia dos costumes ingleses. Em uma época onde a Inglaterra, governada pelos conservadores, parece ter perdido mais uma vez seu propósito em um mundo em constantes mudanças, as composições de Albarn soam mais atuais do que nunca.

*Vale a pena ver o documentário Live Forever: the Rise and Fall of Britpop, disponível no Youtube. Recomendaria a leitura de The Last Party: Britpop, Blair and the Demise of English Rock, de John Harris, mas está fora de catálogo até no Reino Unido.

por Miguel Martins

Carta Capital

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