terça-feira, 6 de janeiro de 2015

“Eu sou cheio de amor. Eu sempre fui cheio de amor.” – Uma Entrevista com Ian MacKaye

O americano Ian MacKaye, nas últimas três décadas, expandiu o punk rock para um método autônomo de produção artística. Se hoje o rock independente se vale de recursos como o controle de suas turnês e distribuição própria, é, em parte, graças a ele.

MacKaye sempre rejeitou a ideia de reduzir sua música a um mero produto. Fundador do selo Dischord, tornou-se notório nos anos 90 por liderar o Fugazi, grupo que, completamente desvinculado dos aparatos das grandes gravadoras (TVs, distribuição em grandes lojas, publicidade etc.), vendeu milhões de discos.

Antes disso, no início da década de 1980, esteve à frente do Minor Threat, um dos principais expoentes do hardcore — e pai da filosofia straight-edge. E ainda há quem aponte o Embrace, outra banda de Mackaye nos anos 80, quando o assunto é a origem do emo.

Mackaye atem-se firme aos preceitos que o tornaram mundialmente famoso: manter-se à parte do mainstream, não fazer da música um lucrativo espetáculo alienado de seu público. Desde 2001, quando o Fugazi entrou em um hiato (pelo jeito, permanente), se apresenta com sua mulher Amy Farina no duo Evens, hoje com três discos lançados.

por Daigo Oliva
Em março de 2007, a dupla fez uma turnê por seis cidades brasileiras. Alguns dias antes de Ian MacKaye fazer suas malas para o Brasil, telefonei para sua residência, em Washington D.C., situada a cinco quilômetros de distância do gabinete na Casa Branca onde George W. Bush ainda depositava sua bunda suja.

Procurei evitar as mesmas perguntas sempre feitas ao sujeito (regra nº1: não perguntar sobre straight-edge — e ainda assim ele falou sobre o assunto). Assim, consegui tirar algumas boas respostas dele — e uma das melhores entrevistas que já tive a o oportunidade de fazer.


Já ouvi gente dizendo que o Brasil mudou sua vida. É verdade? 

Sim, primeiro porque sou uma pessoa bastante aberta a experiências. Sou muito afetado pelo mundo. Eu amo a vida e amo estar vivo. E adoro estar com pessoas que se sentem assim também. A primeira vez que fui ao Brasil foi em 1993, com L7, no Hollywood Rock. E esta foi uma viagem muito esquisita, principalmente por causa do ambiente onde eu estava trabalhando, às voltas com, além do L7, Nirvana, Red Hot Chili Peppers… Eu estava ali apenas trabalhando como técnico de baixo do L7. Então foi um jeito muito estranho de conhecer o Brasil. Lembro que assim que chegamos, a primeira coisa que nos avisaram era para nunca deixarmos o hotel sozinhos. Chegamos em São Paulo e tivemos uma reunião com a equipe de segurança que nos disse:“Muito perigoso, não saiam! Nunca, nunca saiam sozinhos!” Assim que a reunião acabou, saí pela porta dos fundos e fiz sozinho uma caminhada de duas horas pela cidade de São Paulo. E foi maravilhoso, um lugar maravilhoso para se caminhar, e não tive problema algum. Aí eu percebi que aquelas pessoas daquela turnê… Sua perspectiva do Brasil, sua visão do país, foi cuidadosamente moldada pelos promotores e organizadores do festival. Elas não podiam simplesmente sair por aí, ficavam em hotéis cinco estrelas, iam de vans para os estádios e todas as idas e vindas para os aeroportos aconteciam bem cedo e eram cuidadosamente planejadas. Quando voltei com o Fugazi, em 1994, fizemos questão de fazer a turnê de carro para conhecer o país. E foi uma experiência realmente incrível conhecer um país tão indefinível. Na minha concepção, Brasil é o país dos paradoxos: o mais feio e o mais bonito, o mais rico e o mais pobre, o mais cruel e o mais alegre. Mas no geral, a experiência me fez sentir muito bem e feliz. E o fato da música ser uma coisa tão levada a sério e de desempenhar um papel tão importante na cultura do país é algo muito profundo. E me fez pensar que a primeira vez que estive aí, com aquela tour com L7, Nirvana e tudo mais, isso foi meio como nos EUA, as nossas perspectivas foram muito moldadas. Mas a realidade do mundo é que a vida é cheio de surpresas e alegrias. Então, a questão é “as pessoas querem mesmo participar disso ou só querem que sua visão de mundo seja cuidadosamente moldada pelos ‘moldadores’”? Toda turnê é uma experiência profunda pra mim, mas no caso do Brasil foi particularmente profundo. Um país tão radical… Não se compara com nenhum lugar do mundo em que estive. E, sabe, ao mesmo tempo, obviamente, tem tantos problemas nesse país. É engraçado que na mesma medida que há tanta liberdade no seu país, haja uma burocracia insana. Lidar com o governo brasileiro, tirar visto, ir às embaixadas, é uma loucura. Não me leve a mal, eu sei como os americanos são burocráticos também. Mas é loucura!


Para você, “música é sagrada, é um meio agregador e uma forma de expressão que antecede à língua”. Nos shows com The Evens, você toca sentado, fala um bocado com as pessoas durante a apresentação e promove a interação entre a banda e a platéia. A idéia disso é reforçar o aspecto comunicacional da música? 

Em algum grau, sim. Parte do motivo de que eu toco sentado é porque Amy está sentada atrás da bateria. E nós somos os Evens (os quites). Eu sou mais conhecido que Amy, é natural que as pessoas prestem mais atenção em mim, então, se eu estiver de pé pode parecer que ela é só um pano de fundo, um mero músico de apoio. Conosco estando no mesmo nível, as pessoas podem perceber visualmente que eu e Amy nos vemos como iguais. Mas a idéia também tem a ver com o fato de que hoje tenho 45 anos e, sabe, nesse tipo de musica, rock n roll, rock, punk rock ou o que você quiser chamar, existe uma espécie de debandada das pessoas mais velhas deste formato. Quando nós falamos em blues ou jazz ou samba, músicos mais velhos são levados a serio, mas não no rock. No rock, os caras mais velhos fingem que ainda são jovens ou partem para outros tipos de musica, que supostamente seriam mais apropriados para pessoas mais velhas. E eu acho que o rock é uma forma tão legítima quanto qualquer outro tipo de musica. Eu o levo tão a serio quanto o samba, o blues, o jazz ou qualquer outro estilo. Ao invés de passar a agir como um jovem ou passar fazer algo diferente do rock, algo apropriado para pessoas mais velhas, por que não apenas envelhecer e continuar fazer sua musica? Eu pensei que poderia ser interessante levantar esta questão confrontando visualmente, de novo, a idéia das pessoas de um show de rock. As pessoas me vêem tocando sentado e logo pensam “ah, é folk music”. Mas não é folk music, pára com isso! É musica punk, só que sem uma banda com baixo e duas guitarras. Nos EUA, nós não tocamos em casas noturnas, não tocamos em bares. Temos nossos próprios PA’s e nos apresentamos em lugares onde normalmente você não verá bandas. A idéia é quebrar com a concepção que algumas pessoas têm de música. Porque música quando é emitida de um jeito particular, pode se tornar um mero produto da indústria. E na minha cabeça, música é maior e mais antigo que qualquer tipo de indústria. Então, por que temos que jogar de acordo com as regras da indústria? Por que a música se tornou um meio de publicidade, especialmente para a indústria do álcool? Não consigo entender isso. Por que deveríamos tocar em lugares cuja economia é baseada em autodestruição? Esse tipo de coisa eu não consigo entender ou aceitar. Bom, então essa coisa de agregar as pessoas e poder falar com elas vem da idéia de criar um senso de comunidade. No momento em que você vai a um show, você fala com outro, você reconhece o outro. Enfim, música é um ponto de agregação. Existem milhões de razões porque fazemos coisa do jeito que fazemos. Também é porque simplesmente é o jeito que funciona para nós. É interessante assim. Eu estava tão entediado anteriormente… É isso. É tão frustrante para mim estar nos mesmo bares, nos mesmo tipos de lugares em todo o mundo. Isso te desgasta, porque é a mesma coisa sempre. 

Você falou dessa coisa de música folk. Apesar de ter alguns elementos do folk no The Evens, eu não considero a música de vocês como folk, pelo menos não enquanto gênero musical. Mas enquanto conceito, eu acho que o Evens é folk, sim.

Sim, concordo inteiramente com você. Punk é folk. Totalmente. É uma música feita por pessoas reais, geralmente tem teor político, lida com questões sociais, uma música viva que lida com questões reais. Mas o folk como se cristalizou nas cabeças das pessoas, com violões acústicos e tudo mais, este meio que se estagnou e se tornou repetitivo. Mas o punk é de fato folk. Assim como o hip hop, se este é o caso. 

OK, mas sobre essa abordagem mais “folk” na música de vocês, por que escolheram essa direção mais simples, mais calma, menos barulhenta? Você se cansou do barulho ou algo assim?

O Fugazi também tinha canções tranqüilas e viajantes. Para mim, não tem diferença. As pessoas vêm com um papo de que “nossa, eu nunca ouvi você cantar de um jeito tão sereno!” E, porra, vocês já ouviram “Pink Frosty”? Ou “I`m so tired”? 

“Long division”…

Isso, exatamente. Pôxa, são canções tão serenas! Isso é parte da vida. Eu não estou interessado em apenas uma temperatura o tempo todo. Se é sempre quente, você não sente mais. 

Tá bom. Mas para mim, num sentido geral, The Evens é muito mais tranqüilo do que o Fugazi.

E talvez seja mesmo. Mas a coisa é: somos nós dois (ele e Amy Farina) e esta é a música que nós fazemos e não a música que o Fugazi fazia. Não dá para comparar as duas bandas. Eu era um membro de um grupo de quatro pessoas no Fugazi. E agora sou um membro de uma dupla no Evens. E esta é a música que nós fazemos. As pessoas perguntam “por que você está fazendo músicas tão calmas?” E daí? Quem se importa? É a música que eu estou fazendo (risos). Mas parte disso é porque as pessoas sempre me dizem “você é muito furioso e cheio de raiva”. E isso não é verdade. Eu nunca fui assim tão cheio de raiva. Acho que a pessoas supõem isso porque o Fugazi tinha algumas músicas que eram tocadas num volume bem mais alto e eu me envolvia com isso de verdade. Mas é apenas uma realidade física. Se você está em cima do palco, pulando por todos os lados segurando uma guitarra, sob uma temperatura de quase 40 graus, e a música é alta — tudo isso é de um excesso tamanho — e você terá que gritar. Tudo isso te faz trabalhar com as suas paixões. Mas essa idéia de que no Fugazi eu era “cheio de raiva” não é acurada. Eu sou cheio de amor. Eu sempre fui cheio de amor. Eu acho que a percepção das pessoas sobre mim é, além de eu ser apaixonado pelas coisas, é por causa do modo como a música é emitida, por causa de como as pessoas ouvem as coisas.
Mas também há outros aspectos do volume pelos quais eu passei a me interessar. Por exemplo, os momentos mais poderosos que aconteceram na minha vida ocorreram quase no silêncio. É óbvio que o volume pode ser poderoso, mas não é necessariamente a coisa mais poderosa de todas. Se você caminha até um quarto e lá dentro tem uma pessoa em pé gritando na sua cara, você pode parar na porta. Mas se alguém lhe fala calmamente, isso pode atrair sua atenção e te fazer se aproximar. Eu quero que as pessoas se aproximem, não que se afastem. É esta a idéia, mas não significa que sou sempre calmo. No Evens, talvez eu possa gritar. Quem sabe?

Você acha que músicas menos barulhentas e tocadas num volume mais baixo são veículos melhores para comunicar idéias?

Eu acho que é um tipo diferente de veículo. Mas, sim, pode ser melhor em termos da clareza das palavras. Digo, me deixa feliz quando as pessoas me dizem que conseguem entender o que eu canto. Eu e Amy trabalhamos muito duro nas nossas letras, e durante todos estes anos em minha vida eu tenho trabalhado muito, muito duro nas minhas letras. E é interessante para mim ver como as pessoas têm falado sobre as minhas letras. Eu sei que pessoas falam sobre o jeito que eu monto minhas bandas, o som da minha música, o aspecto político disso e a postura, e como isso as afetam e as mudam… Mas quanto às letras, é muito raro as pessoas chegarem até a mim e dizer: “ah, eu estava ouvindo aquela canção e essa frase específica realmente me afetou”. É frustrante para mim porque eu dou muito duro para escrever minhas letras, e quero mesmo que as pessoas se envolvam com minhas letras. Então, bom, nesse ponto, é um bom meio de tornar as letras mais claras na música.
Outra coisa é que nós dois cantamos, e eu amo a textura criada por nossas duas vozes juntas. Se a musica fosse super alta e tivéssemos que berrar, você não ouviria essas nuances. Nós somos uma banda vocal. No Fugazi, Guy, eu, Joe e Brendan, nós todos tínhamos approaches diferentes e a combinação disso gerava ritmos e melodias bastante intricados. E, várias vezes, quando estávamos compondo e tentávamos cantar era bem difícil porque qualquer possível melodia era meio que encoberta pela música, sabe? Não éramos uma banda vocal. 

Vocês tinham que gritar.

Não, não era exatamente sobre gritar, mas era mais difícil, as vozes tinham um papel diferente no Fugazi. O jeito que trabalhávamos musicalmente tornava as composições muito completas. Era se como todos os sabores já estivessem lá. Então, na hora de colocar a vozes… Já com o Evens, se você ouvir as músicas sem as vozes, elas vão soar como uma moldura a ser preenchida. 

No Evens, você tem escrito algumas letras bem mais diretas. No Fugazi, a coisa era um pouco mais abstrata, não tão direta. O que te fez escrever assim?

Primeiro, eu não acho que eu tenho escrito nada mais direto do que no Minor Threat. E eu tenho que te dizer: eu não comparo as coisas como você compara. Não você, mas é típico falar “agora você faz assim, antes você fazia de tal jeito”. Se pensarmos nas letras do Fugazi, algumas delas são extremamente diretas ao ponto. Como “Merchandise”, é direta para caralho. “Suggestion” é direta pra porra. Mesmo no último disco, “Cashout”, por exemplo, é bem direta e política pra caralho! Mas tudo é político…

E não eu fico pensando no que já fiz em termos de letras, (isso que escrevo agora) é simplesmente o que eu sou hoje. Tenho 45 anos de idade, comecei escrever com 17, tem quase 30 anos que escrevo. Simplesmente é o que eu tenho feito por agora, eu não fico pensando por que eu estou fazendo isso agora. Só penso sobre o que está na minha frente: o meu trabalho. 

Mas o que eu digo é: alguma coisa deve ter te provocado a escrever de uma forma mais direta. A realidade do mundo hoje ou qualquer outra coisa…

Mas aí depende de que música você está falando. Como “Shelter Two”, você acha que a letra desta música é bem direta e explícita? 

Não, não acho.

Pois é, eu escrevi essa. Isso é interessante. Por exemplo, uma música que pode soar bem direta como “Dinner With The President”, todos pensam que é sobre George Bush. E não é sobre isso! 

Estou vendo que você gosta de complicar um pouco as coisas… (risos)

(Risos) Não, não é isso. Vou lhe dar uma idéia de como penso minhas letras: OK, “Dinner With The President”… (pigarro) Sabe Hollywood? Uma vez por ano é realizada a cerimônia de entrega do Oscar, certo? E tudo mundo diz “ó meu deus, o Oscar! Que honra!” O valor do Oscar é diretamente ligado ao modo como a pessoa se relaciona com Hollywood. Se essa pessoa percebe que Hollywood é uma bela merda, uma indústria nojenta, espiritualmente danosa para o mundo, que gera desperdícios absurdos e deixa as pessoas envolvidas nisso enlouquecidas com fama e poder… Se você está pouco se fodendo para Hollywood, o Oscar não significa nada. E, em Washington DC, ir a um jantar na Casa Branca é considerado uma grandessíssima honra. Mas se você reconhece que o governo federal é também uma indústria nojenta, cheia de segredos escusos e gente enlouquecida com o poder, então essa honra não tem valor nenhum. Está vendo que a coisa é um pouquinho mais complicada? As pessoas acham que as letras são bem diretas ao ponto, mas a coisa é um pouco mais sutil. É claro que entendo quando as pessoas lêem essa letra e pensam logo de cara: “Ah, esta é uma música sobre George Bush”. E talvez eu tenha mesmo sido inspirado por ele… Claro que eu acho que George Bush é um criminoso, claro que eu acho! Claro que eu acho que sua administração tem causado um dano terrível ao mundo! Seres humanos têm sido brutais uns com os outros desde o início dos tempos, até onde eu sei. E repetidamente as pessoas que estão no poder, governos de países do mundo inteiro, em algum período da história passam a se comportar de maneira absolutamente criminosa. Por exemplo, o que está acontecendo no Iraque neste momento não é uma guerra, não existem sequer dois lados ali, não passa de um crime militar, não passam de assassinatos. Este país (EUA) passa por um momento do qual não consegue sair. É óbvio que eu estou puto com George Bush. Mas mais do que achar que George Bush é um cara mau, eu estou puto com o fato de que ele tem um séqüito o seguindo. E essas pessoas não têm levado em consideração o valor da vida humana, elas simplesmente não pensam nisso. Eu sei que você, vivendo no Brasil… Bom, eu sei que sua história é repleta desse mesmo tipo de merda. 

Ou até mesmo pior…

Exato. Então, bem, eu tenho certeza que no Brasil existem alguns tipos de honra como jantar com o presidente. E, porra, quem se importa?! Se você não reconhece esse governo como algo de fato legítimo e que valha à pena, então isso não significa nada para você.

Então, meu ponto é que, na maioria das vezes, eu escrevo sobre o que eu penso e o que sinto, mas não é tão simples assim. Às vezes, eu tento ser bem direto ao ponto porque eu quero que as pessoas se envolvam, não quero que as pessoas achem que estou tentando confundi-las. No início do Minor Threat, eu dei às pessoas algumas idéias bem simples. Tentei ser o mais direto possível. O que eu descobri é que sendo tão direto, dando às pessoas idéias que, essencialmente, parecem completas, elas podem tomar essas idéias e usá-las como bem entenderem. Por exemplo, uma música como “Straight Edge”, que é uma música sobre auto-definição e autodeterminação, sobre viver a vida como você acha que é melhor para você, sobre rejeitar pressão de grupo e não ser forçado a fazer coisas que você não quer fazer, esta é uma idéia completa que pode ser usada por fundamentalistas para promover intolerância. Ou fazer pessoas obedecerem alguns tipos de tipo de estruturas. E isso nunca, nunca, nunca foi minha intenção.

Eu já usei essa analogia várias vezes antes, mas o que eu percebi é que, escrevendo mensagens extremamente diretas nas minhas músicas, eu posso ter criado “uniformes” que qualquer um pode usar. E uma vez o sujeito o veste, sejam lá quais forem suas intenções, este “uniforme” torna-se sua missão. Então, mais tarde, me dei conta de que ao invés de fazer “uniformes”, eu deveria “costurar” idéias do mesmo modo como se costura tecidos e tramas mais complexas para que as pessoas se envolvessem com isso, para elas construírem algo de positivo a partir disso.

Posso estar errado, mas a letras do Evens, de um modo geral, me passam uma sensação de que o mundo parece muito perdido — e consigo detectar até uma pontinha de desesperança…

Nas minhas letras? 

Sim.

Não! 

(risos) É o que eu sinto às vezes, mas deixe-me concluir: mesmo assim, existe um apelo, explícito ou não, para a reconstrução do senso de coletividade…

Sim, mas tenho que te dizer: minhas letras são muito positivas! 

Sim, mas tem alguma coisa de tristeza entre as camadas. Mesmo porque é um mundo triste às vezes.

Claro, parte dele é. Mas o mundo é alegre também. Mas isso é interessante. Numa música como “Shelter Two”, tem um refrão: “It’s all downhill from here” (É só ladeira abaixo a partir daqui). Não sei como é em português, mas esta frase tem uma conotação negativa no inglês. Mas eu e Amy estávamos pensando que quando nós cantamos “É só ladeira abaixo a partir daqui” significa que estamos num lugar elevado. Deve ser um lugar muito bom. Então, o jeito que vemos isso é que é uma música sobre eu e Amy nos encontrando e nos dando conta que daqui de cima é só ladeira abaixo. Estarmos juntos é tão bom, nos coloca num lugar tão elevado… Tem uma linha que diz “we keep on climbing and never find the top” (nós continuamos a escalar e nunca achamos o topo), ou seja, só fica cada vez melhor. A verdade é que eu jogo bastante com as palavras. 

Eu estou vendo. As letras parecem não ser tão simples quanto eu estava pensando. Acho que te subestimei um pouco…

Não, não, a coisa trapaceia um pouco mesmo. Várias partes das minhas músicas são meio tapeadoras. Nos EUA, sempre vem alguém até mim dizendo “cara, você é tão pra baixo…” Não! Se envolva com a música. Não leia o livro apenas, pense sobre ele. Não ouça a música apenas, se envolva, seja parte da música, deixe que as palavras façam efeito sobre você. Não entre nessa de “se é isto que está sendo dito, é isso que significa”. Não seja tão rápido. Tente entender o que a voz está dizendo naquele tom. Acho que indo tocar no Brasil, as pessoas vão poder de fato nos ver, e quando você assiste à performance de alguém é bem mais fácil ter uma idéia do que há por trás da música.

Mas, sim, eu canto mesmo sobre coisas que sinto e/ou com as quais me preocupo. Parte disso tem a ver com o fato de que durante a última década havia pouquíssimas bandas que cantavam sobre alguma coisa. Elas realmente mascaravam a coisa toda ou escondiam sentimentos por trás referências imagéticas esquisitas. Aí você tinha um monte de músicas sobre peças de carro e coisas do gênero, gente cantando sobre motores sendo ligados. (risos) Acho que nesse período as pessoas se tornaram muito retraídas para cantar sobre coisas com as quais elas se importavam. Na cultura americana, pelo menos, tornou-se bem não-cool se importar com algo. É o pânico de ser “politicamente correto”. O que é extremamente bizarro para mim. É errado ser correto politicamente falando? (risos) 

É, as pessoas tornaram-se cada vez mais cínicas e se sentem ridículas quando se preocupam com algo maior do que suas vidas particulares…

Na minha opinião, isso tem a ver com a “Revolução Reagan”, com as operações psicológicas dessa “Revolução Reagan”, que estimulou o cinismo e a fazer piada com as pessoas que se importam. E todo mundo se tornou irônico, o que é bem cômodo. Ironia se tornou tão habitual nesta cultura… 

Bem, mas eu não acho que seja exclusivamente relacionado a Reagan, é algo relacionado à falha do Projeto da Modernidade, sabe?

Hmmm… Quando disse “Revolução Reagan” eu não quis dizer que… Bom, o que eu sei é que quando Reagan assumiu o cargo de presidente, ele começou a bater forte no ativismo político de qualquer espécie. Porque, lembre-se, nos 70, a esquerda era um pouco mais forte, e havia Jimmy Carter. E Carter dizia: “Use um suéter!” Era sensacional! Um presidente dos Estados Unidos da América dizendo à população do país: “Desligue essa porra de aquecedor e use um suéter! Poupe energia!” Era inacreditável para mim um presidente americano dizer uma coisa daquela. Então, quando Reagan assumiu a Casa Branca, o lema era: “Ligue seus aquecedores, vão às compras, e não se preocupem, os EUA são o nº1 do mundo. Vocês não têm que se preocupar em serem responsáveis.” E quando eu disse “Revolução Reagan”, não estava me referindo a Ronald Reagan, mas a um todo, todo o levante da direita americana. E ele foi claramente bem sucedido. Veja só o que está acontecendo agora! 

Você acha que a administração de Bush é, de alguma forma, uma volta a esses tempos? Eu tenho falado com gente como Mission of Burma, Henry Rollins, Mike Watt, Gary Panter, e todos eles me disseram que sentem que, política e moralmente, os EUA estão voltando aos anos 80, ou ainda pior, aos anos 50.

Eu acho que as sociedades se movem em círculos. E, sim, eu sou obrigado a acreditar que estamos presenciando uma forte guinada à direita. Não dá para ir mais à direita que isso. Uma hora vamos ter que voltar um pouco para esquerda, uma hora as pessoas vão despertar. 

Pelo menos a maioria do Congresso americano não é mais republicana.

Exatamente. Acho que a população americana está começando a reconhecer que ela tem que dar um fim a esse seu sono profundo, a reconhecer que crimes estão acontecendo. Parece que estão começando a sentir a uma pontada de dor. Isso, no geral, é só uma sensação minha. Mas parece que as pessoas estão começando a sentir que terão que ser mais responsáveis. E, bom, se você sente alguma coisa, já é o primeiro passo para se importar com algo. Se você não sente, você não se importa com nada.

Sabe, eu sou de esquerda, eu acho que as pessoas têm que se importar. Eu acho que deveríamos ser politicamente corretos. Pense nessas palavras, no que isso significa: é sobre ser correto politicamente, não incorreto. Nós temos que reclamar de volta a língua, retomá-la dos republicanos e da direita. Eles definitivamente dominaram a língua e usaram a seu bel prazer. E a população americana, por causa desse seu sono profundo e da mídia, e em virtude de sua isolação e falta de senso coletivo, se rendeu a essas idéias. Mas eu acho que, coletivamente, as pessoas começaram a se dar conta de que as coisas estão fodidas. 

Bom, já que falamos tanto sobre a era Reagan, sou obrigado a falar dessa nostalgia em volta do punk hardcore oitentista que tem sido aquecida por alguns livros e documentários lançados recentemente. Vi você falando, no programa de Ian Svenonius, Soft Focus, que não está interessando em ler e ver esses livros e documentários porque ler o que outros têm a dizer sobre o que você fez pode interferir no que você está fazendo agora. Isso aí tem a ver com o fato de que enquanto para alguns o punk rock foi um fenômeno passageiro, você sempre deixa claro que você ainda faz música punk.

Sim! Claro! 

Por que é tão difícil para as pessoas entenderem que existe uma continuidade do conceito punk?

Porque sabe quando você freqüenta o ensino médio e aí você se forma, e então esse período da sua vida fica para sempre no passado? Na sua cabeça, o ensino médio foi aquilo lá que você fez naquele tempo e naquele lugar. Algumas pessoas encaram o punk rock assim. Elas se graduam em punk rock. E uma vez graduadas, pronto, o punk está morto. Mas eu não penso em vida em termos de graduação, é tudo uma linha só para mim. Eu nunca deixei de ser um punk rocker. E mesmo quando eu descobri o punk, em 1979, foi muito importante para mim, mas não foi como “pôxa, estão aí algumas idéias nas quais nunca tinha pensando antes”. Foi mais como “Ah! Aqui está o lugar onde deveria estar!”.
As pessoas falam: “o punk está morto”, e eu digo: “não, o seu punk está morto”. O punk não morre. Aqui vai uma imagem para você: você está sentado na beira de um rio, vendo o fluxo, e percebe que num ponto do seu curso a água está ficando agitada porque está passando por cima de uma pedra. O rio é calmo, mas neste ponto a água borbulha e esguicha. Isto é punk rock. As pessoas podem prestar atenção na pedra por algum tempo e depois simplesmente seguir o fluxo. Para elas, a rocha ficou para trás, mas ela sempre estará ali, na contramão do rio. Enquanto houver mainstream, haverá underground. Enquanto o houver tédio e inércia, e a tentativa de convencer a garotada que este é o jeito como as coisas são, ela vai dizer: “nós rejeitamos isso”. A coisa pode mudar de nome, mas nunca morre.

Olha só, eu vi Leonard Cohen tocar uma vez aqui em Washington DC. Eu adoro Leonard Cohen. Sua filha é fã de Fugazi e ela nos convidou para o show. E no palco, Leonard Cohen dedicou uma música para o Fugazi. 

Sério? Caralho! Você viu isso?

Sim, eu estava lá! Eu levei minha mãe comigo! 

Você deve ter ficado doidão.

Ah, sim, eu fiquei maluco! (risos) Bom, mas ele disse do palco: “Fugazi é uma banda que trava uma batalha num mundo melhor descrito como fodido. E eu os vejo claramente como um elo da corrente da qual sou parte”. E, bom, é isso aí! 

Cacete… E quantos anos ele tem? 70 e alguma coisa?

Isso foi há uns 10 anos, então ele devia ter uns 60 e alguma coisa, caminhando para os 70… Mas o ponto é que ele vê os elos dessa corrente. É como uma linha cronológica: um elo, depois outro elo, outro elo, outro elo, mais um elo… E eu vejo da mesma forma.

Mas voltando àquela coisa da relação das pessoas com a história do punk rock, isso vem de querer ser parte da história. Eu não estou nem aí pra isso, eu quero é ser parte do presente. 

Mas você não acha que esses livros e documentários podem ser úteis para as novas gerações?

Eu não disse que eles não deveriam existir. Tudo que eu disse é que eu não estou interessado. Claro que as pessoas devem escrever sobre isso. Eu acho importante. 

Mas você nem quer saber disso…

Eu não quero ler sobre a minha própria história porque será escrita da maneira errada. Quem pode escrever a sua história de um jeito certo? Tipo, eu posso escrever um livro sobre a sua carreira e sua biografia corretamente? Eu consigo escrever um livro tão certo sobre você que você pode lê-lo sem problemas? Sem chance alguma!

Em alguns momentos, eu me deparei com livros e comentários de algumas pessoas sobre a minha história e falavam por que eu fiz isso ou aquilo… E eram tão errados! Era inacreditável! Uma vez eu li uma coisa sobre uma música que eu escrevi no Minor Threat e dizia lá que eu estava tão puto com a política de Reagan em El Salvador… E, porra, era pura bobagem! Essa música específica foi escrita porque eu estava chateado, porque eu estava puto pra caralho com alguns amigos, porque tinha alguns problemas de relacionamento com uma pessoa, ficava nervoso só de pensar nessa pessoa… Então, sejam quais forem suas intenções, o escritor sempre vai se colocar no meio do assunto. A sua abordagem da minha história vai ser errada. Eu não digo errado para todo mundo, mas para mim. Eu não posso ler isso, seria depressivo. E se eu lesse, talvez eu deixaria de fazer as minhas coisas. E não quero parar de fazer as minhas coisas. 

Beleza, mas por que você contribui com esse tipo de coisa então? Você está por todos os lados quando o assunto é o registro da história do hardcore.

Eu acho que dou essas entrevistas porque é importante alguém falar sobre coisas positivas. Porque, nesses registros, tem tantas pessoas que estão tão despregadas da sua própria história que quando elas falam sobre isso só enfatizam o aspecto sensacionalista da coisa: “era tão violento”, “éramos tão malvados e loucos”, “isso era negativo”, “aquilo era tão diabólico”. Todos os livros e filmes dos quais me falaram sempre enfatizam o quão fodido, perigoso e violento era o hardcore durante os anos 80. Mas, para mim, a história nunca foi sobre a violência. A história é que, apesar da violência, apesar da insanidade, apesar dos obstáculos e dificuldades, havia uma paixão pela música e por aquela comunidade e isso era o que nos mantinha produzindo. Esta é a história. Você conhece Michael Azerrad? 

Que escreveu “Our Band Could Be Your Life”, certo?

Isso. Eu não li o livro dele, mas eu o conheço pessoalmente. Uma vez, eu fui vê-lo fazer uma leitura de seu livro. Ele leu umas quatro ou cinco coisas diferentes do livro. Todas elas eram sobre: “oh, alguém jogou um saco cheio de vômito no palco”, “alguém bateu em outrem”, “um fulano sofreu uma overdose”… Depois da leitura, nós nos cumprimentamos e eu disse para ele: “Eu estou chocado de verdade com a seleção que fez do seu livro. Porque tudo que você falou está relacionado ao sensacionalismo. Tudo é negativo e violento. Você falou de destruição, mas nós éramos construtores! Nós estávamos criando algo.” Eu não me sentava numa porra de van por dias e dias, dirigindo de costa a costa, porque eu queria quebrar as coisas, eu queria criar coisas. Mas este sou eu. E espero que quando eu dou essas entrevistas, as pessoas possam comparar as coisas que eu falo com as que os outros entrevistados falam e perceber que eu vejo o punk rock como uma coisa profundamente positiva e construtiva. Eu nunca me interessei pelo aspecto nilista disso. Eu sempre pensei isso como música, como uma comunidade, e isso é bom, não ruim.

Sinto muito, mas é frustrante, para mim, ter dividido quartos e palcos com pessoas que eram cheias até o estômago de violência, que não perdiam a oportunidade de espancar alguém. É triste ter que ter dividido palcos e espaços com pessoas que tinham demônios tão internos que só podiam mitigá-los por meio de drogas e suicídio. Sinto muito ter visto pessoas tão confusas a respeito de sua própria sexualidade que acabavam abusando, manipulando ou tirando vantagem de outras. Estas são coisas frustrantes, mas, por outro lado, a vida é assim, o mundo em que vivemos é assim. No meu ponto de vista, o que era importante é que éramos garotos trabalhando juntos, montado suas próprias bandas, fazendo suas próprias músicas, organizando seus próprios shows e turnês, fazendo todas essas coisas completamente à parte da indústria. A indústria reclamava para ela a propriedade e o direito a todo tipo de música e nós dizíamos: “Vai se foder! Você não é dona de tudo! Você não pode nos ter!” 

É, isso que você está dizendo faz muito sentido, porque no final daquele livro “American Hardcore”, de Steven Blush, há um capítulo que se dedica a listar depoimentos que explicam porque o punk acabou. E você, um cara extremamente presente no livro, não consta nesse capítulo.

Pois é! Não tem. E no filme (American Hardcore, de Steven Blush e Paul Rachman), ele me fez a mesma pergunta novamente e eu lhe falei: “Eu não deixei o hardcore, o hardcore é que me deixou. No meu ponto vista, eu nunca deixei de ser um punk rocker, eu nunca deixei de ser hardcore. Sou mais hardcore do que antes. O problema é que a palavra foi associada a uma imagem bem particular”. Deixe-me te contar uma coisa: eu acabo de voltar de uma turnê de um mês na Austrália, onde eu e Amy dirigimos todos os dias, carregamos e montamos nosso próprio equipamento, tocamos em lugares onde nenhuma banda toca. A coisa toda foi muito desafiadora. Isso foi hardcore para caralho!. Nós não maquiamos nossa música com volume, figurinos, luzes ou cenário. Nós simplesmente tocamos praticamente no chão a uma distância de um metro da platéia. Dá para ser mais hardcore que isso? 

Quase a mesma coisa nos início dos anos 80…

Exatamente a mesma coisa! Nós estávamos levando a música até as pessoas e tentando nos fazer entender. Minor Threat não era alto, nós éramos rápidos. Mas nada se compara com o sistema de PA’s que hoje vemos em shows. É insano o tamanho dos PA’s de hoje! E o Minor Threat tocava com caixinhas! Claro que éramos furiosos e rápidos e tudo mais, mas tocávamos em porões das casas das pessoas! Hoje, nós vemos por aí shows para 40 mil pessoas e os PA’s têm o tamanho de containers de navio…

Você precisa usar protetores auriculares para ouvir música? Imagine você comendo um prato qualquer, e a comida é tão apimentada que você tem usar uma espécie de aparato de borracha na sua boca. Para mim, isto é ouvir música com protetores auriculares. Isso é loucura! Não faz o menor sentido! Quando você coloca protetores auriculares no seu ouvido, você filtra os mais belos tipos de texturas sonoras e nuances. Tudo se torna um zumbindo só. Obviamente, você usa isso porque está tentando salvar a sua audição. Mas, porra, por que tão alto então? As pessoas, confusamente, equacionam poder e volume, pensam que são a mesma coisa. E não são a mesma coisa. 

É, o volume no rock às vezes corre o risco de ser uma coisa meio fálica…

Sim, é como em Mágico de Oz. Ele está atrás das cortinas, emitindo uma voz altíssima, imensa, soprando tudo a sua frente! Aquilo é o rock ‘n’ roll, baby!
(risos) 

Você sempre diz que o melhor jeito de evitar a super exploração econômica de majors e o mainstream não é destruindo-os, mas criando um novo ambiente artístico independente. A Internet está mudando as regras da indústria musical. Há quem diga que ela está expandindo a ética d.i.y. (do it yourself, faça você mesmo) do punk e redemocratizando a música. Você acha que as coisas estão realmente mudando nesse sentido?

Hmmm… Talvez a coisa não seja tão revolucionária assim. Mas idéia da música poder escoar globalmente é bem interessante. Por exemplo, muitos de nossos discos não chegam até o Brasil e agora qualquer um com acesso a um computador pode comprá-lo ou pegá-lo de graça. É claro que, no momento, uma parte importante dessa equação é ter acesso a um computador. Mas, sim, no mundo ocidental, onde muitas pessoas têm acesso a um computador, está acontecendo algum tipo de democratização. Mas ainda é bem cedo para constatar qualquer coisa.

De qualquer forma, existem aplicações excelentes referentes a computadores. É maravilhoso para mim a idéia de que se eu estou interessado em um determinado tipo de música, eu posso encontrá-lo no computador. Eu não acho que soa bem, mas pelo menos eu posso ouvir e ter uma idéia de como é. Eu não tenho um Ipod, e, pessoalmente, não escuto muita música digital. Eu ouço música em vinil, cds ou em fitas. Este sou eu. Mas é ótimo isso. Na Austrália e Nova Zelândia, eu perguntava às pessoas: “quantos de vocês baixaram nossos discos?” E um monte de pessoas tinha feito isso. E de graça! Eu dizia: “obrigado!” É para isso que fazemos música, para as pessoas ouvirem.

O simples fato de você me perguntar sobre o The Evens já me deixa feliz. Significa que nossa música chegou aí. Este é o ponto, é por isso que fazemos música. Eu não faço música para fazer grana. (risos) Eu faço para que as pessoas se envolvam com a minha música. O fato de ir ao Brasil e as pessoas daí terem uma idéia de como soamos me deixa muito feliz.

Nesse aspecto, internet é um excelente instrumento. E eu não me importo com downloads gratuitos. Para mim, está legal. É claro que as pessoas devem apoiar os artistas, dar suporte ao trabalho deles e não esperar que Bill Gates faça isso. Porque fazer música não é de graça. Estamos indo ao Brasil e isso não é de graça.

Mas, bem, acho que vai ser interessante ver o que vai acontecer. Primeiro é necessário que todos tenham acesso a computadores. Aí, sim, poderemos falar sobre democratização.

Uma coisa que é louca sobre isso é que a internet é vastíssima. É de longe a maior loja de discos do mundo. Por onde começar? Eu estava aqui me lembrando que quando eu comecei a me apaixonar por punk rock foi numa pequena lojinha de discos… E, pense só nisso: eu e você estamos aqui falando por, sei lá, quase uma hora, e enquanto nós falamos, no resto do mundo, foi criada música suficiente para ouvirmos pelo resto de nossas vidas. Então, está tudo lá fora. Sempre esteve, mesmo antes da internet. E, sinceramente, eu realmente não sei quantas opções a mais eu preciso. Se uma música me parece interessante, vou atrás dela, faço uma pequena pesquisa e procuro comprar os discos, se ela me diz alguma coisa. Mas ter tudo em termos de música, ter toda a música do mundo disponível no meu computador… Eu não dou a mínima pra isso. Isso é loucura.

Vou te dizer a última coisa sobre internet: se a internet de fato destruir a indústria fonográfica um dia e devolver a música ao ar, será como ver a União Soviética ruir. E ficarei mais do que satisfeito em ver minha pequena gravadora ruir junto. Desde o advento da energia elétrica, a indústria da música tem sido um imenso monopólio. Antes disso, a música estava no ar, não pertencia a ninguém, não havia como vendê-la. Óbvio que você pagava para ver alguém tocando, pagava por uma partitura, mas a música em si era de graça. E de mais ou menos uns 100 anos para cá, a indústria construiu um monopólio completamente totalizante da música. Mas se a internet conseguir falir todo o sistema da indústria da música, está ótimo para mim, que a Dischord vá pro ralo junto. É mais importante que música esteja nas mãos das pessoas. É difícil para eu entender o pânico em torno disso. Se os músicos arrumarem um jeito de conseguir dinheiro, está tudo bem. E não há porque temer isso, músicos sempre arranjaram um jeito de serem pagos.

30/03/2007

por Sávio Vilela

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